UM FILME FALADO, Manoel de Oliveira, 2003 por João Bénard da Costa 1 - Quando, em 1957, Chaplin estreou o polêmico A King in New York, Rossellini terá
dito: “É o filme de um homem livre.” Enquanto via Um
Filme Falado, o filme de Manoel de Oliveira que hoje se estréia em
Portugal, lembrei-me dessa reação como a mais óbvia. Só um homem livre (coisa
muito mais difícil de se ser do que de se falar) podia ter ousado uma obra
assim. Obra que não presta contas a ninguém, não pede contas a ninguém e não
ajusta contas com ninguém. Obra 2 - Começo pelo título. Aparentemente nada de mais
corriqueiro, quase um pleonasmo, pois que, com raríssimas exceções, há quase
oitenta anos que todos os filmes o são. Estou com curiosidade de saber como o
vão traduzir para inglês ou para americano: “A Talkie”? Literalmente, devia
ser assim, embora a Variety lhe tenha chamado A Talking Picture, o que, sem trair, não é exatamente a mesma
coisa. Mas quando nos pegam na mão para nos lembrar o óbvio, é porque o óbvio
não é tão óbvio como aparenta sê-lo. Para gente não poliglota, os filmes
falados noutras línguas ou não são ouvidos, são lidos (no caso das versões
legendadas), ou são ouvidos (no caso das versões dubladas) em fala de gente
que fala a nossa fala, ou seja em fala que a gente do filme não falou. Em Viagem ao Princípio do Mundo, um dos
filmes de Oliveira que mais se aproximam deste, uma velha analfabeta da raia
minhota perguntava do sobrinho, nascido em França e que só falava francês: “Por
que é que ele não fala a nossa fala?” Essa pergunta está implícita em todos
os filmes falados, como está implícita em todas as traduções e tem sido um
dos temas prediletos de George Steiner. Pois bem. Neste filme, há um jantar que reúne um
ator americano, de origem polaca, no papel do capitão do navio (John
Malkovich), uma atriz francesa, no papel de uma rica mulher de negócios
(Catherine Deneuve), uma atriz italiana, no papel de um famoso modelo
(Stefania Sandrelli), e uma atriz grega no papel de uma célebre cantora
(Irene Papas). É um jantar de circunstância, pois que o circunstancial
capitão convida para a sua mesa as três celebridades que levava a bordo. A
conversa é circunstancial, “uma espécie de jogo”, como lhe chama o capitão,
pois que cada um ou cada uma resume a história da vida, com paragem nas datas
mais marcantes: nascimento, casamento ou não casamento, filhos ou não filhos.
Nada de indiscreto, nem de confidencial. Conversa de salão ou jogo de sala.
Mas o que sai fora das normas (de todas as normas) é que o capitão fala
inglês, a empresária francês, a ex-modelo italiano e a cantora grego. E todos
se entendem perfeitamente. Graças às legendas, também o espectador os
entende, como notava com pertinência o crítico da Variety, que se esqueceu,
contudo, de sublinhar que essa seqüência proíbe a dublagem, que lhe retiraria
por completo o sentido. Mesmo que admitamos, como hipótese, que os quatro
dominam as quatro línguas (não parece ser o caso), nenhum fala a fala do
outro. Como aliás é notado, a situação é a inversa do mito de Babel. A língua
não é barreira mas continuidade sem ruptura. É a falar que eles se entendem,
no diálogo mais antiglobalizador que alguma vez ouvi Numa mesa próxima estão uma professora de História
e a sua filha, ambas portuguesas (Leonor Silveira e Filipa de Almeida).
Quando, mais tarde, o capitão as convida para se reunirem aos quatro (antes
fizera à professora convite mais dúbio), o “milagre” interrompe-se e é na
língua “global” (o inglês) que Leonor Silveira dialoga com os habitantes da
outra mesa. A nossa fala, ao longo do filme, não é comunicável senão entre
portugueses (mãe e filha, ou ambas com Luís Miguel Cintra, a fazer de Luís
Miguel Cintra, quando, “por acaso”, se encontram no Cairo e aquele lhes faz
de cicerone).
3 - Navio. Quase todo o filme se passa nele,
viagem de uma mãe e filha pelo Mediterrâneo, matriz da civilização de que
vivemos os dias finais. Essa situação levou alguns críticos estrangeiros a
comparar este último Oliveira a E la nave
va de Fellini. Só que este navio não vai. À exceção da parte final da
viagem, quando o Mediterrâneo não é mais dele, só o vemos imobilizado nos
vários portos (Marselha, Nápoles, Atenas, Istambul, Cairo, Aden) ou num
belíssimo plano recorrente, em que a proa rasga as águas azuis. Ao princípio
(largada do Tejo e de Lisboa) há movimento (travelling até Belém) mas não
há palavras, com o filme falado a começar como filme mudo. Depois, sempre na
mesma amurada, em plano em que quase só muda a indumentária das
protagonistas, o navio está acostado. Dele, se vê a entrada de Catherine
Deneuve (Marselha), de Stefania Sandrelli (Nápoles) e de Irene Papas
(Atenas). Catherine Deveuve é filmada em plongée, num curto plano. Stefania
Sandrelli tem uma entrada mais aparatosa. Irene Papas, entrada de vedete. Mas
só passado o Mediterrâneo todos se encontram e só passado o Mediterrâneo
vemos o interior do navio, até essa altura nunca desvendado. Já não é meio de
viagem, mas sim fim de viagem, já não é lugar de cruzeiro, mas marca de cruz.
Barca de Caronte, se preferirem. E, se há filme nos antípodas do de Fellini,
é um Um Filme Falado, certamente o
mais clássico e o menos barroco dos filmes de Oliveira. Se se pode dizer que
ambos choram o fim de uma civilização, o que é transbordante em Fellini é
contido 4 - Como a mãe não se cansa de dizer, essa viagem,
planificada para ir ao encontro do marido, que a espera em Bombaim, é um
cruzeiro porque decidiu aproveitá-la para mostrar à filha os lugares
santificados (ou mitificados) da história do Ocidente. É uma viagem de
instrução, como se dizia antigamente. É nessa instrução que tropeçam quase
todos os detratores (significativamente portugueses) do filme de Oliveira. A
mãe, professora de História, conta a História como Luís Miguel Cintra contava
a História de Portugal no Non. Mas
em Marselha o que sobressai é um caniche branco, são os mercados, é uma
conversa em francês com um vendedor de peixe e é uma placa no chão, remetendo
para a colonização fenícia e para a invenção do alfabeto. Em Nápoles, o
Castel dell’Ovo e a profecia de Virgílio que o assinalou como sinal de
perenidade. O Vesúvio. Ou Pompéia, com a pergunta sobre “o que é uma vida
devassa”, a sobreposição dos guias turísticos e o campo-contracampo do décor “reconstituído”
e da ruína. Cave canem. Em Atenas, a Acrópole e “como podia ser bonito se
tudo estivesse como era”, fala desmentida pelos fulgurantes planos do
Pártenon, do Erectéion e, sobretudo, pelo plongée inadjetivável sobre o
teatro. Depois, Istambul e Santa Sofia. Depois, o Cairo e a Esfinge.
5 - Mas não quero acabar sem dizer que este é um
filme - talvez seja o primeiro - que traz a memória do 11 de Setembro e a
imagem do mundo que a 11 de Setembro começou. O plano final é a reverberação (espelhada, depois,
no olhar assombroso de Malkovich) do “plano” que vimos, quando homens e
mulheres saltaram das torres. Mas nem mãe nem filha saltam, desobedecendo à
ordem do capitão. Já não há tempo. Estão, como estivessem no início, na
amurada do navio. Mas o tempo suspendeu-se definitivamente e aquilo que foi
viagem para transmitir a memória do passado, já não tem qualquer futuro. O vento da
morte (vento do norte) soprou mais forte, ao contrário do que pediu a
belíssima canção de Irene Papas. Ficou-nos a beleza de Outrora? No filme
ficou. Do navio, a última imagem é a de Copérnico, o primeiro a dizer-nos que
a Terra não é o centro do Universo. E é para outros universos que Um Filme Falado nos convoca. Quem,
neles, falará a nossa fala? Alguém nos ouve? Alguém nos vê? |
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