A MALVADA, Joseph L. Mankiewicz, 1950

por João Bénard da Costa


Durante esta semana do Maio de Sarkozy e da missing Madeleine, lembrei-me muitas vezes - vá-se lá saber porquê - do filme de Mankiewicz com o título desta crônica que, em 1950, foi um caso muito sério. Baseado numa peça radiofônica de Mary Orr, chamada The Wisdom of Eve, a sabedoria ficou no tinteiro. No título português - simplesmente Eva - também se sacrificou o “all about”. Mas é um filme “all about” e é um filme sobre sabedorias, a que há quem dê outros nomes começados por s e menos sutis.


All about quem? Sabedoria de quem? Eve, ou seja, uma mulher chamada Eve Harrington, interpretada por essa fabulosa atriz que foi Anne Baxter (1923-1985), a neta de Frank Loyd Wright. Mas Eva, como toda a gente sabe, foi, também, o nome da primeira mulher, a tal que nasceu da costela de Adão, e depois o levou a comer do fruto proibido para alegada desgraça de todos nós. Por isso, ninguém nunca se enganou sobre quem era quem neste filme em que todos enganam todos. O título não visa apenas a personagem arrepiante de Eve Harrington. Visa a Mulher, que ela é suposta representar paradigmaticamente. É um filme sobre a Mulher ou sobre as mulheres, num retrato que, à época, foi devidamente saboreado e hoje desencadearia por certo iras feministas, já que comunga abundantemente da idéia de que há coisas que só as mulheres são capazes de fazer, ou pelo menos que só certas mulheres são capazes de fazer. Eve não é obviamente um nome inocente e não se refere apenas à personagem que tem esse nome. Refere-se, igualmente, a uma certa Margo Channing, papel desempenhado pela celebérrima Bette Davis (1908-1989), mais velha quinze anos do que Anne Baxter e refere-se a uma tal Phoebe, que no filme foi vivida por Barbara Bates (1925-1969) a mais nova das três, a menos conhecida das três e a que mais cedo se foi desta vida descontente, quando se estrangulou aos 43 anos. Refere-se também a outra, mas essa deixo-a para o fim.


Mankiewicz - o realizador - sabia muito bem o que estava a fazer. Aliás, soube sempre. E, para um cineasta da palavra como ele o foi, não é nada inocente que variasse em torno da palavra (não me apanham a dizer fonema, embora aqui até desse jeito). Por isso, surgem tão recorrentemente na obra expressões como “ever Eve”, “forgive Eve”, “Eve evil”, etc. etc. introduzindo uma magia verbal da qual nunca nos desprendemos (o filme, aliás, decorre no reino das palavras, por excelência, que é o teatro).


Margo Channing é uma grande, grande atriz de teatro, “the first lady on the American stage” e é uma “prima donna assoluta” com todos os tiques delas. Uma vez, casualmente (não foi por acaso, mas isso só o saberemos muito depois) cai-lhe aos pés do camarim a tal Eve. Não, não queria importunar, não, não queria que reparassem nela, a tremer de frio e de fome. Queria só olhar para o seu ídolo e servi-lo, nem que fosse para lhe tirar os sapatos, nem que fosse para lhe lavar a dita com água de rosas. Conta a sua história e é de fazer chorar as pedras da calçada. Até alguém que sabia mais do que o Calça de Sousel (que sempre me disseram que sabia muito) como a grande Margo, acredita nessa história da carochinha. Arranjem lá um emprego para a pequena.


Quem nos conta a história é um homem, um enfatuado crítico de teatro, mau como as cobras, chamado Addison DeWitt, já que só um homem pode ser tão mau como as piores mulheres, sobretudo quando interpretado pelo cínico nº1 da grande época de Hollywood: George Sanders. Conta-a a meias com a melhor amiga de Margo, Karen Richards, outra mulher e pêras, interpretada por outra atriz e pêras: Celeste Holm.


Contam-na do fim para o princípio. Com efeito, as primeiras imagens deste filme - enquanto ouvimos a voz off de George Sanders - mostram-nos, enterrado em flores, o “Sarah Siddons Award”, galardão destinado a premiar a melhor atriz de teatro do ano, e que, como viremos a saber pouco depois, foi naquela noite entregue a Eve Harrington. Ainda nada sabendo da história, não percebemos bem o que jaz sob a montanha de flores: a associação com a morte é imediata, neste necrofilme.


Toda a gente aplaude, de pé e em delírio, Eve Harrington, a nova estrela. Sanders conta-nos então como nasceu essa estrela que, pouco a pouco, passo a passo, deixou de calçar sapatos e começou a descalçar a protetora, servindo-se de todos os meios para conseguir os seus fins. Por isso, nessa noite de glória, os únicos que não aplaudem Eve são Margo (a quem a coitadinha ajudou a roubar papéis e o estrelato), o crítico e a amiga que conhecem bem como a coisa se passou.


Mas já por lá aparece (perto do final) a tal Phoebe, versão afinada de Eve. Sai da festa, vai para o camarim de Eve, veste-lhe o casaco de peles, e com o “Sarah Siddon Award” na mão, avança solenemente para um espelho com seis faces, seguida pela câmara que nos dá a ver múltiplas imagens dela, distribuindo sorrisos e agradecendo imaginários aplausos. Da morte, viemos parar aos espelhos, num longo caminho em flashback.


O episódio de Barbara Bates está no filme para fechar um círculo, repetindo o encontro inicial de Anne Baxter com Bette Davis. Por isso o cerimonial da entrega do prêmio é um cerimonial de morte. Ao atingir o topo, Anne Baxter inicia a descida. No próximo ano, o prêmio será provavelmente para Barbara Bates. E assim sucessivamente, neste filme que se podia chamar A Star is Dead. Morte de Bette Davis às mãos de Anne Baxter e morte de Anne Baxter às mãos de Barbara Bates. Morte no duplo sentido: não só a ascensão de Anne Baxter marca o declínio de Bette Davis, como esta o aceita, quando desiste do papel que lhe ia ser roubado, provocando o fabuloso ataque de riso de Celeste Holm. Através de Eve Harrington, Margo Channing percebeu que não pode mais aos 40 anos continuar a fazer papéis de 25 e aceitará a solidão. E o prêmio ficou esquecido num táxi, donde George Sanders o vem entregar a Barbara Bates, percebendo, entre portas, como a história se iria continuar a repetir.


Obviamente, não estou aqui para contar o filme todo. Obviamente, nem Margo, nem nenhum dos outros, tinham nascido ontem. Addison DeWitt (Addison pode ter que ver com Adam) chega a dizer a Eve que “nunca houve nem haverá outra mulher igual a ela”, tão “killer” como ele. No fim do filme, descobre que se enganou. Mulheres como essa há muitas e haverá muitas e lá está a jovem Phoebe preparada para pegar na deixa. Cada uma daquelas mulheres procura a sua imagem e ela surge-lhes sempre devolvida por outra, no filme com mais rimas femininas que me lembro de ter visto. Mas Hollywood sempre soube lidar com Eves e enganar com verdades. Se, no filme, Eve Harrington suplantou Margo Channing, Anne Baxter, por fabulosa que tenha sido (e foi), nunca suplantou Bette Davis. Da pobre Barbara Bates, a história não reza ou só reza em duas linhas. Mas numa das festas do filme, o tal crítico que quis fazer de Adão e foi bem enganado, aparece, para se fazer valer, com uma loira boa como o milho e parva como um texugo, que confundia waiter com butler e Sable com Gable. Mas, enquanto os convidados troçam, Sanders diz a frase que depois mais citada foi: “I can see your career rising east like the sun”. Essa loura que, como o sol, nascia a oriente, chamava-se nem mais nem menos do que Marilyn Monroe, ali num dos primeiros papéis da vida dela. Na história do filme, ou melhor, na letra da história do filme, não conta para nada a não ser para afagar o ego de Addison. Para a história, em torno da história do filmes, foi ela quem roubou a estatueta e as flores a todas as outras mulheres e nem sequer lhes andou a pregar rasteiras.


E se All About Eve foi o filme que até hoje, ex aequo com Titanic de 97, teve mais nomeações para o Oscar (catorze); se foi o único filme em que foram nomeadas quatro atrizes (Bette Davis e Anne Baxter para Oscar de melhor atriz e Celeste Holm e Thelma Ritter para o de melhor secundária), o filme ganhou apenas seis Oscars e nenhum para nenhuma atriz. O único Oscar de atores foi ganho por George Sanders, all about men.


Ficamos a saber tudo sobre Eve? Sobre aquelas Eves ficamos e enganamo-nos tanto nas tristes figuras como nas grandes figuras. Mas sobre a Mulher (about Eve) tão pouco sabemos antes como depois. Nos rastros delas e nos rostos delas, confundimo-nos sobre o all e sobre o about. Ou, como também se diz no filme, “toda a gente tem coração, exceto alguma gente”. A gente que o filme nos deu a ver, a gente que infelizmente a vida nos dá tantas vezes a ver, disfarçadas de pobres diabos ou pobres diabos mesmo, enterrados em flores para não se sentir o mau hálito.


 

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