DEUS SABE QUANTO AMEI, Vincente
Minnelli, 1958 por João Bénard da Costa Dos
melodramas de Vincente Minnelli, há dois entre os quais sempre hesito quando
me pedem hierarquias de preferência: The
Clock, realizado em 1945, e que em Portugal se chamou A Hora da Saudade, e Some Came Running, estreado em 1959, e
que em Portugal se chamou Deus Sabe
Quanto Amei. The Clock, que já alguém comparou
- e não fui eu - à Aurora de
Murnau, é talvez o mais belo dos breves encontros do cinema, encontro de 24
horas entre o mais magoado dos atores dos forties
- Robert Walker - e a mais magoada das atrizes de sempre - Judy Garland. A
mesma velha história do soldado em licença na grande cidade, que encontra uma
rapariga, ela apaixona-se por ele, ele por ela, casam à tardinha, têm uma
noite e depois ele volta para a guerra. Quem sorri e diz que já viu cem
vezes, é porque nunca viu The Clock,
onde tudo isso acontece mas acontece como se nunca tivesse acontecido. Mas se
Deus sabe quanto amo esse filme, apesar de tudo, escolho hoje Some Came Running, até porque há
hipóteses de ser ouvido por mais gente (o filme é mais conhecido e passou há
pouco tempo na RTP, embora não em scope,
sem o qual só por memória funciona). Os dois
filmes - para lá da marca específica de Minnelli, o homem que, como a varinha
de condão, transformou em ouro tudo quanto tocou - têm em comum uma
aproximável concepção do tempo e uma aproximável variação dos desígnios do
destino nos limites daquele. Houve
tempo para conhecermos a família de Dave (Frank Sinatra), com o irmão
pusilânime, a cunhada sinistra e a sobrinha bonita. Houve tempo para
conhecermos a professora puritana, essa Miss French (Martha Hyer) que às
vezes lembra Eva Marie Saint e que usava carrapito com medo que lhe soltassem
os cabelos, como Sinatra fez naquela única e incrível tarde de amor deles.
Houve tempo para muitos batoteiros e muitas pegas, paisagem acidental e
essencial para dela emergirem Bama (Dean Martin), o homem que nunca tirava o
chapéu, e Ginny (Shirley MacLaine), a mulher que nunca largava a mala de mão
em forma de coelhinho de peluche. Houve tempo, até, para uma bela e efêmera
secretária, Miss Barclay (Nancy Gates), que rima com todo o resto. Só não
houve tempo para o tempo do mais belo amor da mais bela mulher,
Ginny-Shirley, essa que veio a correr e morreu no fim para salvar Sinatra,
que lhe deitou a cabeça em cima da berrante almofada encarnada que a pedido
dela lhe dera, e que era a coisa de que ela mais gostava no mundo. “Menina e
moça me levaram de casa da minha mãe. Qual fosse a causa daquela minha
levada, era pequena não na soube então.” Some
Came Running fez-me lembrar o começo da novela de Bernardim. Quando Shirley
MacLaine acorda no autocarro onde até aí não a víramos (a câmera só nos mostrara
Sinatra a dormir), depois de ler o anúncio da companhia transportadora (“and
leave the driving to us”) ou de ouvir o primeiro diálogo dela com Sinatra
(“You’re a nice kid. I like you. Take care.”), sinto essa sensação de
“levada”, um dia, menina e moça (Shirley MacLaine que o não era, era-o mais
do que outra nenhuma), de “casa da minha mãe” (sempre gostei mais dessa
variante do texto do que da usual, que diz “de casa de meus pais”) por causas
que os pequenos nunca sabem, que faz parte de serem pequenos nunca saberem.
Há, no filme de Minnelli, uma mesma dupla acentuação da inocência, a mesma
saudade por um quente mundo perdido, a mesma viagem, o mesmo lento sublinhar
do tempo, do “então”. E, mais importante ainda, a mesma equivalência nas
cores, no décor e nos olhos de
Shirley MacLaine para as labiais de Bernardim, com o corte final (a “dental”)
do “então”, no movimento sublime, duma rapidez feita tanto de reflexo, como
da ausência de reflexo, com que a moça menina se atira para cima do corpo de
Sinatra, apanhando em cheio nas costas a bala que a ele era destinada. Centro
deste filme prodigioso, o mais bonito personagem que o cinema alguma vez
inventou, Ginny é menina e moça perdida na vida e perdida na morte, no
sentido em que também se diz “mulher perdida”, “mulher da vida”, tão belas
expressões. E no fim, no enterro dela, percebemos que, se Dean Martin nunca
tirou o chapéu, foi para tirar nesse momento, para a única mulher que a esse
gesto obrigava. Metera-se,
uma noite, num autocarro e atravessara centenas de quilômetros porque
Sinatra, sentimental demais quando bebia demais, a convidou a segui-lo.
Passada a bebedeira, na manhã da chegada a Parkman, ele já nem se lembrava
dela. Mas lembrava-se ela e ficava, numa ida sem volta, apesar da nota de 50 dólares
que Sinatra lhe metia à mão. E ficava,
atrapalhada, atrapalhante, sem perceber de que terra era, sempre com coisas a
mais nas mãos (a tal carteira, a tal almofada, as flores artificiais), sempre
com os penduricalhos, sempre a pintar os olhos, a pôr rimel nas pestanas,
“leaving the drive to others”. E há as
duas seqüências mais inesquecíveis. A primeira
é quando decide ir à escola, conhecer a professora por quem Sinatra se
apaixonara, para “tirar a limpo” aquela história. A professora ensina literatura
e explica aos alunos que as bebedeiras de Poe, as drogas de Quincey, a
“neurótica promiscuidade” de Baudelaire não os tornavam menores. “Eram
grandes homens, grandes na força, grandes nas fraquezas”. A campainha toca no
fim desse parvo discurso. E, enquanto os estudantes saem, aparece na frente
daquela mulher que sabe tudo e não percebe nada, a mulher que não sabe nada e
percebe tudo. Vem nervosíssima, timidíssima,, amedrontadíssima. Se a
professora gostar tanto de Sinatra quanto Sinatra gosta dela, todos os seus
sonhos morrerão ali. Como ela própria diz, na profundidade de campo da aula
vazia, contra um quadro onde está escrito um texto de Zola: “You don’t know
how scared I was.” “I want
him to have whatever he wants. Even if it means you instead of me.” Durante
toda a seqüência, não disse nem fez uma coisa feia. Só ganhou o
campo-contracampo porque a professora era incapaz de olhar para além do
campo dela e ver para além das aparências a “rival” que não tinha nada, “not
even a reputation”. A segunda
seqüência é pouco depois, quando Sinatra chega à casa, possesso de dor de
corno, porque Miss French lhe dera com os pés (“I don’t like your life. I don’t like what you think. I don’t like the
people you like”) na ressaca desse face a face com a
“pega”. Sinatra
insulta-a a despropósito. Há uma panorâmica sobre ela e ela a dizer: “You
gotta remember I’m human. I’ve feelings”. Depois, Sinatra arrepende-se. Mas
tudo quanto tem para dar àquela mulher que antes tinha dito que era capaz de
fazer tudo, tudo quanto ele lhe pedisse (e veio a fazer mais) é
perguntar-lhe: “Do you clean that place for me?” E o que a frase podia ter de
horrível ou frustrante é salvo pelo sorriso de Shirley e aquele “Oh! Could
I?”, como se acabasse de receber o mais belo dos presentes. Corte e
Sinatra lê-lhe o romance com que acabara de ganhar um prêmio. Sentada no
chão, os braços à volta dos joelhos, de calças cor-de-rosa, Shirley está toda
nele e nada no que ele diz. E, quando ele a acusa de não ter percebido uma
palavra do que ouvira, ela responde com esta tirada prodigiosa: “No, I don’t.
But that don’t means I don’t like the story. I don’t understand you, neither, but that don’t means I don’t like you.
I love you, but I don’t understand you. What’s the matter?” Vira a
cara para o lado, amuada. Há uma “pausa côncava de assombro” preenchida
apenas pela espantosa partitura de Elmer Bernstein. A câmera fica fixa no
rosto de Sinatra, e tudo quanto o filme e a vida até aí acumulara nele
(tempo, décor, cidades, néons, família, a loura e frígida
professora) sai cá para fora no inesperado pedido de casamento. Segue-se a
incredulidade de Shirley (“Não deves brincar com essas coisas”) e depois o
abraço, abraço incrível de entrega e doação. Há o degrau e a coda volta ao
início: “You gotta remember, I’m human.” Nestas
duas seqüências como na seqüência final do crime, como em todo o filme -
Minnelli atinge o apogeu da sua arte. Há cineastas, como há pessoas, que
procedem por silogismos e assim destroem tudo e se destroem a si próprias. Há
cineastas, como há pessoas, que estão para além de qualquer lógica e
transfiguram tudo o que tocam em oração e oblação. Nessa delirante
irracionalidade do amor, apanágio de tão raros. Como diria Shirley MacLaine:
“Thanks, awfully, so awfully much.” |
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