UM CONDENADO À MORTE ESCAPOU, Robert Bresson, 1956

por João Bénard da Costa


Em 1951, Robert Bresson estreou a sua terceira longa-metragem, Le journal d’un curé de campagne, baseada no romance homônimo de Bernanos. Pela terceira vez, aguardavam-no salas vazias e a admiração imensa de alguns criadores e alguns críticos. Le journal confirmou Bresson como “um caso à parte neste mundo terrível” para usar palavras de Cocteau. E como “este mundo” é ainda mais “terrível”, quando valem para a arte as regras da indústria (caso do cinema) Bresson ficou sem filmar entre 1951 e 1956. Nenhum produtor arriscou em dois grandes projetos que o ocuparam nesses anos: Lancelot du Lac (só veio a fazer esse filme, vinte anos depois, em 1974) e uma adaptação do célebre romance La Princesse de Clèves, o mesmo que em 1999 Manoel de Oliveira adaptou em A Carta.


Mas Bresson não quebrou nem torceu. Se alguma coisa mudou nele, nos anos que decorreram entre a estréia de Le journal e de Un condamné à mort, foi no sentido de uma radicalização cada vez maior. É durante esse período que Bresson recusou a palavra “cinema” e a substituiu pelo termo “cinematógrafo”. “Para estabelecer bem a diferença, sublinhada por Cocteau, entre os filmes correntes e a arte cinematográfica”, disse. E disse ainda: “é pelo cinematógrafo que reviverá a arte que o cinema está a querer matar”. O que é o cinematógrafo? “É uma escrita com imagens e movimentos e sons e em que umas e outros só têm valor pelas suas posições e relações”. “É um novo modo de escrever, logo de sentir”. E ainda disse: “O que eu faço nada tem que ver com o espetáculo e tudo tem que ver com a escrita”.


Durante esse mesmo período, Bresson refletiu também sobre o papel dos atores. E decidiu que nunca mais voltaria a usar um ator num filme dele. “Atores, não. Direção de atores, não. Usar modelos, tomados à vida”. Modelos no sentido da palavra em pintura. Modelos que não têm que representar nem um nem outro, nem eles próprios. Não têm que representar ninguém. E que devem falar como se falassem sozinhos. Monólogo em vez de diálogo. Modelos onde as intenções devem ser radicalmente suprimidas. Modelos, que não têm que exprimir nada, pensar o que dizem ou o que fazem, nem pensar no que dizem ou no que fazem. Páginas brancas, aonde a câmara irá escrever e inscrever tudo.


Em Un condamné à mort todas as teorias de Bresson encontram aplicação rigorosa e sem qualquer transigência. A imagem, despojadíssima, deve-se de novo (como em Le journal) ao velho operador Léonce-Henri Burel que, nos tempos do cinema mudo, dirigira a fotografia das obras-primas de Abel Gance, Feyder ou L’Herbier. A música “de filme” desapareceu, para ficar - apenas - o “Kyrie” da Grande Missa de Mozart. E o som é tratado com uma complexidade para que não há muitos antecedentes nem conseqüentes.


Simultaneamente, o tema do filme é o tema mais radicalmente bressoniano. Le journal terminava com a famosa frase de Bernanos: “Tout est Grâce”, dentro dos parâmetros do que se convencionou chamar o “jansenismo” de Bresson, ou seja a sua crença de que o inexplicável acontece mais pela Graça de Deus do que pelos méritos das ações dos homens. Un condamné, filme baseado num fato real e suscitado pela leitura da narrativa desse fato (a evasão, em 1943, do Comandante André Dévigny do Forte de Montluc, donde, teoricamente, qualquer evasão era impossível) colocava e coloca, novamente, a questão: por que conseguiu Dévigny o que mais ninguém conseguiu? Por que é que foi ele o escolhido para fugir de Montluc e por que é que tudo se conjuga para que ele triunfe onde os outros fracassaram? O subtítulo do filme Le vent souffle où il veut dá a primeira chave. A frase é do Evangelho de S. João e do famoso episódio em que Jesus explica a Nicodemos que do Espírito (o Vento, a Graça) só se sabe que não se sabe donde vem, nem para onde vai. No filme, Fontaine di-la ao seu companheiro de cela contígua, Blanchet.


Mas o primeiro título do filme, segundo o próprio Bresson, foi “Ajuda-te a ti mesmo” segundo o conhecido provérbio que completa essa conjugação com “e Deus te ajudará”. Entre esses dois títulos está o fundamental da obra: a fuga de Fontaine é e não é inexplicável: evidentemente, tudo joga para o ajudar, nenhum fato, nenhum encontro é irrelevante para o seu sucesso (mesmo os que, aparentemente, mais o pareciam prejudicar: da ocultação da posse do lápis à chegada de Jost). Mas Fontaine não foi objeto dum milagre gratuito: desde o início que ele trabalha, trabalha arduamente (com toda a sua vontade e com toda a sua inteligência) para conseguir o seu único objetivo: a fuga. Tudo se dispõe a favor dele (e não a favor dos outros, como é o caso de Orsini), mas ele dispõe esse favor. Essa Graça, se se preferir.


E o que dispõe, e do que dispõe, é sobretudo da presença dos outros, sem os quais - vai-o sabendo - não teria conseguido fugir. Por isso, a sua primeira tentativa - sozinho e alheado dos companheiros - no carro, no princípio do filme - é falhada. Por isso a tentativa final resulta. Para resultar foi preciso o malogro de Orsini (“foi preciso que ele falhasse para que tu triunfasses”, diz-lhe Blanchet, que antes o acusara de ainda poder vir a ser o causador da morte de todos, como possivelmente terá sido), foi preciso a vinda de Jost (“sem ele”, diz durante a fuga de Fontaine, “nunca teria conseguido saltar o muro’). Foi preciso confiar em Terry, no Pastor, etc. Todos servem Fontaine, e a água que passa de mão em mão, é o sinal da salvação dele. Por isso, é nessas alturas, e no princípio e no fim - e apenas - que a música de Mozart se faz ouvir, sinal dessa força invisível que conduz o condenado a fugir à morte. Força que Fontaine nunca sabe se é uma graça ou uma armadilha, mas em que confia, e que segue.


O acaso - o grande tema de Bresson - intervém sob todas as espécies nesta obra. Para bem de Fontaine e mal dos outros, como, por exemplo, da sentinela alemã que tem que ser abatida, e cuja lenta e ignorada preparação para a morte é um dos mais assombrosos e fascinantes momentos do filme.


Filme que ele também se processa entre dois mundos que Bresson se recusa a separar. O mundo do inexplicável, “traduzido” por Mozart, pela direção de atores, pela iluminação (sobre a qual se poderiam escrever centenas de páginas) e o da atenção ao real, traduzido por uma das mais minuciosas “découpages” e planificações e montagens que possa ser concebida (60.000 metros de película para 2.900 metros de filme). Um Condenado à Morte Escapou, é um prodigioso exercício lógico, num terreno donde a lógica está banida. Não haverá certamente muitas obras que, como esta, combinem um máximo de racionalidade com um máximo de irracionalidade.


 

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