OS AMORES DE ASTREA E CELADON, Eric Rohmer, 2007 por João Bénard da Costa Rohmer justíssimo 1 - Entre a visão de Les amours d’Astrée et de Céladon
(num decrépito e ensombrecido King que já não sei se é verso ou se é
reverso do frígido S. Jorge, quando este parece que abre as portas e as
fecha) e o artigo que começo a escrever quando finalmente o dedo grande
do meu pé esquerdo (pé para onde aparto) me deixa em relativa paz (uma
descalma leve mas não ma tirem, como disse já não sei bem quem) devia
ter lido e não li três textos que talvez me ajudassem. a)
O artigo que foi capa de recente exemplar de uma revista anglo-saxônica
(tão célebre, mas tão qual?) e que proclamava pela enésima vez a morte
da cultura francesa, para gáudio de quem ainda lhe não perdoou tudo o
que lhe deve e o famigerado “subjonctif de l’imparfait”. b) L’Astrée,
tragicomédia pastoril de Honoré d’Urfé, publicada entre 1607 e 1627,
onde Jean-Jacques Rousseau aprendeu a ler, e que fez, no século XIX, as
delícias de George Sand e de Théophile Gautier. c) Vanité que la peinture, artigo publicado no nº 3 dos Cahiers du Cinéma,
em Junho de 1951 e assinado por um certo Maurice Scherer, que é uma e a
mesma pessoa do que este Eric Rohmer, a quem chamei justíssimo. Não
me fazia mal nenhum se também tivesse estudado um bocadinho a IVª
Écloga de Virgílio, para perceber onde acaba a deusa que, no céu, passou
a ser o sexto signo do Zodíaco - Virgem como Artemisa ou como Diana - e
onde começa a “belle bergère” que se deixou cair numa armadilha e baniu Céladon do seu olhar (“Est-ce, belle bergère, pour m’éprouver ou pour me désesperer?”). O
artigo da revista saxônica posso pedi-lo a uma tão certa Secretária que
mo tire da net, que nem tudo o que vem à rede é peixe e há mariscos
requintados. Vanité que la peinture, tenho-o à mão de semear e basta-me subir um lance de escadas. Já Astrée…
O original, na Biblioteca Nacional de França, tem mais de 5.000 páginas
e o realizador apenas aproveitou dele uma pequena parte, essa em que
conta do pastor e da pastora que com tanto amor se amaram que o dia que
não se viram, etcetera e tal, que a história não é bem a mesma e eu não
estou aqui para Crisfal. Quem
a contou a Rohmer foi Pierre Zucca (1943-1995), cineasta que nem eu
mostrei na Cinemateca, quase tão desconhecido como hoje o é d’Urfé, mas
que um dia adaptou Roberte ce soir de Klossowski, com o próprio Klossowski e o mano Balthus como atores. Numa nota de intenções, publicada em La lettre du cinéma (verão 1999-inverno 2000, Ed. P.O.L.), Zucca, o primeiro a querer levar Astrée ao cinema, escreveu:
“Fazer um filme em que o verde seja mais verde do que o verde das
árvores, em que a água tenha sempre a transparência das nascentes, em
que as sarças ericem espinhos que as tornem intransponíveis”.
“Fazer um filme sobre a atração dos corpos antes da aparição do pecado,
nessa terra ignorada da Arcádia, onde falsos-verdadeiros pastores
recriem fervorosamente o jardim desaparecido do Éden. Como? Os
atores devem ter a idade em que os rapazes se gabarolam, olhando a
sombra que começa a nascer-lhes sobre o beiço de cima. As atrizes devem
ter os anos em que as raparigas se maravilham com a curva crescente dos
seios despontantes”. Parece
que todo o argumento de Zucca foi publicado na dita revista, mas também
parece que as semelhanças com o filme de Rohmer se ficam por esse
verde, essas águas, essas sarças. Rapazes e raparigas - sobretudo o
rapaz Céladon e a rapariga Astrée - são novíssimos e belíssimos. Andy
Gillet chama-se ele, Stéphanie Crayencour chama-se ela e dou um doce a
quem me disser que já muito ouvira o nome deles. Mas não têm as idades
de que fala Zucca, pois Rohmer percebeu bem que os tempos e as censuras
não estão para primícias dessas, nem para com quem quer casar com Pero
Gaiteiro: “Já tenho treze anos / que os fiz por Janeiro”. Pedofilias só
no século XVII e até nos quadros que se vêem no filme (eu não lhes falei
da pintura?) Rohmer se guarda de se inspirar nesse Bacanal de Poussin,
que está no Palácio Barberini, em Roma. Dou
a palavra a Rohmer: “Havia mesmo uma passagem que Zucca queria mostrar,
que, nos dias de hoje, não passava a nenhuma censura. É quando se
mostra o quadro: ‘O Juízo de Páris’. As raparigas pintadas nuas diante
de Páris têm doze anos. Impossível mostrar isso. Que é que fiz? No
livro, a história é contada por Astrée a uma personagem que não retive.
Fiz Adamas contá-la a Léonide” (para quem não viu o filme, Adamas e
Léonide são pai e filha, ele com os seus quarentas ou cinqüentas, ela
muito chegada aos dezoito). “Servi-me de um quadro de um pintor pouco
conhecido, Blanchard. Pintor de pouca personalidade, pois que uma das
personagens é copiada do Concerto Campestre de Giorgione e as
deusas imitam as de um quadro de Rubens. As personagens do quadro, no
filme, são muito mais velhas do que as evocadas. Sou muito mais casto do
que d’Urfé.” Já vamos à castidade. Antes, tenho que pôr alguma ordem nisto, como Dolmancé, noutras alcovas, gostava de pedir. 2- “Construí a minha história em torno de Astrée e de Céladon, que é uma das histórias de L’Astrée, mas muito longe de ser a única.” Que história? Já
disse que Astrée e Céladon de muito amor se amavam. Mas, numa festa
pastoril, mancebos cometem descuidos e a ciosa Semyra rouba um beijo ao
belo imprudente. Astrée surpreende a cena e não vê nela qualquer
inocência, muito pelo contrário. Quando os dois se reencontram, no alto
daquela planície e daquele verde, de nada valem a Céladon juras e
protestos, tão mais verdadeiros quanto mais repelidos. Astrée,
louríssima, azulíssima e formosíssima, proíbe-o de lhe voltar a
aparecer, a não ser se e quando ela expressamente lho ordenar. Desesperado,
Céladon responde-lhe que se vai deitar a afogar no rio que ali passa
perto. Astrée não estremece nem esmorece. Com ela ficamos, enquanto o
rapaz corre para as águas impetuosas. Só
passado um tanto ou quanto é que Astrée o chama, mas ele já não a ouve.
Corre ela para a beira do rio, mas muito terá corrido Céladon que nem
ela, nem o irmão que mandou chamar, o acham em parte alguma. Um chapéu
na margem é tudo quanto resta dele. Muito
depois, e já nos reinos da cúpida Galatéia, as ninfas encontram o corpo
inanimado do jovem, deitado de bruços na areia. Levam-no para o castelo
(Clermont Ferrand, castelo no Loire e do Loire, desses onde há
labirintos de adúlteros). Quando o deitam na cama e a câmera faz uma
lenta panorâmica sobre a perna nua dele, até quase à virilha,
descobrimos que, tão belo, mais que belo o devíamos chamar. A
castelã apaixona-se perdidamente por esse corpo, mas Céladon nenhuma
contemplação tem por esse amor. Quando se restabelece, só pensa em
fugir, o que consegue, com a ajuda de Léonide, disfarçado de mulher. Mas,
é então e só então que surge o grande tema do filme, tema de Rohmer e
nem de Zucca nem de d’Urfé: o tema da fidelidade, da constância.
“Fidelidade não apenas a uma pessoa mas à palavra, à promessa. Aqui
fidelidade à proibição de voltar a ver Astrée, à ordem do ‘nunca mais’.
Fidelidade, apesar de tudo, fidelidade apesar do absurdo. Vezes sem
conta Léonide e o pai o estimularam a procurar Astrée, certamente
arrependida do que exigira. ‘Será amor’ - perguntam-lhe - ‘recusar ver
aquela que ama?’”. Mas Céladon não vacila nunca, nem naquele dia em que
encontrou Astrée, adormecida na floresta. Quando ela abriu os olhos,
Céladon fugiu-lhe deixando no lugar dele a luz mais irrefragável.
“Qual a razão de tanta fidelidade?” perguntaram a Rohmer. “É uma
questão bizarra”, respondeu ele. “Como dizia um herói de Dostoiévski,
porque é que é preciso ser moral? Porque é que é preciso ser bom? Etc.
Há algo de positivo na fidelidade, que hoje talvez seja menos evidente
do que outrora, quando a vida era feita de fidelidades: a uma religião, a
ritos, ao casamento, a nós próprios. É tudo o que lhe posso responder”.
Mas há também o tema do reconhecimento, tema do Perceval, tema do Lohengrin, tema do Graal.
Adamas, o sábio pai, diz-lhe que tem uma filha muito parecida com ele.
Se Céladon se vestir de mulher, tomar a identidade da filha, não é ele
mas outra quem aparecerá a Astrée. Céladon deixa-se convencer
pelo ardil e é como bela mulher que aparece à amada, que imediatamente
se sente atraída. Mais um ardil e as raparigas dormem todas no mesmo
quarto. Astrée, Léonide e outra donzela na cama muito grande. Céladon -
ou a mulher que simula ser - na cama pequena. Mal cai a noite, Astrée
junta-se a Céladon nessa estreita cama e a longa camisa descai, deixando
nu um dos seios, mais branco do que a neve. Depois, adormece na cama
das outras meninas, sempre com um só peito destapado. No livro, não sei
como a situação se resolvia. No
filme, Rohmer afastou-se da letra para sublinhar o espírito. Quando o
sol os acorda a todos (ou as acorda a todas) Astrée volta para a cama de
Céladon e trocam-se beijos e carícias sem que - é a voz off quem no-lo
informa - a rapariga se dê conta que os corpos se afagam como não se
costumam afagar duas raparigas. “Ai se tu fosses Céladon…”. E,
subitamente, antes do écran fundir a negro, a única frase que não vem da
novela, mas de Rohmer: “Vis, Vis, Vis Céladon! Vis je te commande!”. A
proibição do início - ou a maldição do início - desfez-se e, Céladon,
assumindo-se como homem, pode, de novo, sem quebra de fidelidade, voltar
a ser de Astrée, como Astrée dele. O último abraço é abraço de homem
com mulher e de mulher com homem. Como
nas pinturas de Simon Vouet, que vimos ao longo do filme, servindo de
fundo a Céladon, os corpos assumem a sua glória e o Tempo é vencido pelo
Amor. O plano da perna nua de Céladon. Os planos do seio nu de Astrée.
Os sinais e as imagens. Rohmer é mais casto? Ou mais perverso? Ou é como
a deusa (Virgo justíssima) o cineasta da fidelidade ao justíssimo olhar? Há muito tempo que eu não via filme tão bonito. |
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