CASSINO, Martin Scorsese, 1995 por João Bénard da Costa O Nuno de Bragança costumava
citar um escritor (curioso, não me lembro qual) que dava por conselho aos
jovens romancistas nunca escreverem sobre acontecimentos recentes. “Deixem
passar pelo menos vinte anos sobre a história ‘fundamental’ que vos
aconteceu. Só nessa altura saberão se ela foi mesmo fundamental e - mais
importante - só nessa altura ela se poderá tornar fundamental para outros.”
Pus aspas nem sei bem porquê. Não estou nada certo que as palavras do Nuno B.
tenham sido essas ou que ele citasse ipsis verbis o escritor de que não
recordo o nome. Além disso, como conselho para jovens, parece-me absurdo. De
que falariam então? Da infância? Vem isto a propósito das dificuldades de juízos
definitivos sobre filmes recentes. Diz-se - costuma dizer-se - que o tempo
julgará e que quem demasiado se excita com novidades envelhece depressa.
Quantas vezes me disseram (e até eu disse) sobre este ou aquele filme muito
amado outrora e jamais recontemplado: “Reviste-o recentemente? Também eu
gostei muito em tempos, mas envelheceu imenso e envelheceu mal.” Às vezes
acontece, com os filmes como com as pessoas. Mas, pelo menos a partir de uma
certa idade, ou não acontece tanto como se diz ou o que de mais grave acontece
acontece-nos a nós e não à obra ou pessoas que amamos. Por mim falo, e agora
falo só de filmes: o que muito amei, depois da segunda metade dos anos 50,
amo ainda mais hoje. O que nunca amei, menos ainda amo hoje. As exceções
confirmam a regra. Por isso, eu não tenho grande medo de corar daqui a vinte
anos (se em outro mundo se corar) sobre o que vou escrever de Casino de
Scorsese. Julgo que não me enganei. Ou, se me enganei, enganei-me em tudo, o
que equivale a dizer que não me enganei Scorsese, duvido que pelas mesmas razões do tal
escritor, filmou acontecimentos passados há cerca de vinte anos. Las Vegas
como Las Vegas foi nos anos 70, quando havia aquele “buraco negro” à roda da
cidade (assombroso plano, esse) e ainda não se tinha transformado na
disneylândia atual, se acreditarmos no que diz, no fim, a título póstumo, Sam
Rothstein (Robert De Niro). Evidentemente, Scorsese, filho de “blue collar workers”
de “New York’s
Little Italy”, nunca foi a Las Vegas no tempo do filme e nada de
importante se passou lá que diretamente tivesse que ver com ele (a não ser
pelo lado italianamerican,
esse do documentário de E é como um sonho que Casino começa. Em fundo, na banda
sonora, Bach (A
Paixão Segundo São Mateus) e, na banda imagem, as cores
fulgurantes de Las Vegas, lugar da “paixão” a que vamos assistir. Em primeiro
plano, a silhueta que depois saberemos ser a de De Niro e, quase logo a
seguir, as chamas do carro a arder. Três, quatro planos (não os contei, mas
não serão mais) e sabemos onde estamos: num mundo sem amor, num mundo sem
amenidade (“aus
Lieb und Huld”) ou no sonho desse mundo. Simultaneamente, o onirismo é sublinhado por três
elementos capitais: a cor (do fato cor de morango esborrachado de De Niro aos
diversos amarelos das chamas e do deserto), cor destoante como a do
technicolor em três bandas dos filmes dos anos 40, com duas dominantes e uma
atenuação; a fusão de sombras e chamas; e, logo a seguir, a voz off, voz off da personagem
que pressupomos morta. Como Vertigo,
Casino
começa com uma situação que torna inverossímil a salvação do protagonista e,
no entanto, ele salva-se. Como Sunset
Boulevard, a história do que aconteceu vai ser-nos narrada por um
morto (nesse caso, por alguém que supomos morto). E, apesar do tom bem
wellesiano da primeira frase (“Quando um homem se apaixona por uma mulher,
tem de confiar nela e não lhe resta outra alternativa”), não temos dúvidas
que aquela voz nos fala do “além”, um além que conhece este “aquém” e não têm
quaisquer ilusões sobre ele. Já sabemos que ele errou: não devia ter-se
apaixonado pela mulher que refere, da qual nessa altura não sabemos ainda
nada e que só muito mais tarde irá entrar no filme. Estamos no reino dos
mortos, da onisciência fácil, o mesmo onde se situou William Holden No final, saberemos que Sam Rothstein não morreu e
que foi mesmo o único que não morreu, no vórtice que a todos sorveu. Mas,
contra as imagens de Las Vegas metamorfoseada em Oz, o protagonista é tão
irreal (novamente, tão onírico) como o feiticeiro convertido do final do
filme com Judy Garland. Terá alguma razão moral, já não tem nenhuma razão
estética. Sobrevivente de uma tragédia, é um fantomático personagem
dramático. Ninguém pode ser, ao mesmo tempo, Orestes e o Coro. A não ser que,
como De Niro, fique condenado para sempre a errar nos lugares onde errou. Mas deixem-me com a voz off. Ou com as
vozes off,
pois que outras, muito mais tarde, se virão juntar à de De Niro, para nos dar
outras versões da história. Se já nos últimos filmes, sobretudo a partir de Goodfellas (que,
iluminado por Casino,
pode ser revisto a outra sombra) Scorsese tinha conferido à voz off um lugar cada
vez mais fulcral (e pense-se apenas na voz mágica de Joanne Woodward,
conduzindo The Age
of Innocence do lugar de Edith Wharton), nunca, como em Casino, o
tratamento dado a ela, ou a elas, foi tão radicalmente vertiginoso. Porque é
nela, ou nelas, que se perde o ponto de vista, a subjetivização que o
principio do filme parecia enunciar, exatamente quando Sam Rothstein perde o
dele, ao ver, numa imagem do ecrã do casino (imagem vídeo, ou imagem como
vídeo tratada) Ginger Mckenna (Sharon Stone), a mulher que não só precipita a
derrocada do poder visual dele, como do poder de todos os outros. Um só filme, de que eu me lembre, conferiu, até hoje,
à voz off
uma dimensão tão alucinante. Falo de The
Saga of Anatahan de Sternberg, em que, como aqui, narra,
antecipa, comenta, resume, elide ou mostra o que diz elidir. Associação
gratuita, com dois mundos tão diversos? Menos do que se possa supor, porque,
num e noutro filme, a paixão dominante é a paixão pelo poder e porque, num e
noutro filme, os personagens não são destruídos por inimigos externos mas
pelo inimigo que trazem dentro de si. Qualquer deles - De Niro, Sharon Stone,
Joe Pesci, o genialíssimo Joe Pesci - bem podia ter dito o que Sternberg
disse em Anatahan:
“O engenho do homem para se destruir a si próprio é maior do que qualquer
outro. Nos seres humanos, os furacões desencadeiam-se imprevisivelmente. É
difícil reconhecer os sinais que os anunciam.” Algum, daqueles muitos que se
reuniram no casamento de Sam e Ginger (a começar pelos próprios), terá jamais
pensado que, nessa tarde, começava o princípio do fim deles? Guardem esta idéia do princípio do fim. Voltarei a
ela. Mas, por agora, quero continuar nas bandas sonoras, que, de Bach a Bach
(princípio e fim) nos irão reservar todas as surpresas, de Little Richard a
Dean Martin, culminado na citação do tema de Delerue para Le mépris de
Godard, na grande cena do deserto entre Sam e Nicky (Joe Pesci). E, se Casino é, visual, vocal e
musicalmente, um filme em forma de fuga, permito-me eu, a propósito dessa seqüência,
dizer que nunca, depois de Renoir, tinha visto, assim, enquadrados em leve contre-plongée, dois homens contra o céu,
sabendo um que a única possibilidade de sair vivo dali é manter o outro sob o
poder do seu verbo e aprendendo o outro, que o escuta, que aquele é o único
homem que nunca será capaz de matar. E não sabíamos nós - eu não sabia, pelo
menos - que Renoir podia assim rimar com Godard e aprendemos nós - eu aprendi,
pelo menos - que, no zênite de uma relação de amor entre homens como aqueles,
Godard e Renoir podiam vir mais à memória do que Hawks, demasiado americano
para os entender. E é a seguir a esse longo plano no deserto, pavidamente
estremecente, que a câmera, sobre o chão do cassino, varre tudo num travelling a
toda a sela, para a última celebração do poder de Sam Rothstein, “the fucked jewish”. O que é que eu estava a dizer? Estava a falar da
música. “Quis conservar o espírito dos anos 70. É que se o público ouve, de
repente, uma música de compositor, diz com os seus botões ‘estou num filme’ e
era isso que eu queria evitar. A idéia veio-me de Truffaut, mas também
porque, nos anos 60, as músicas dos filmes entravam logo na moda. A canção de
Moulin Rouge,
por exemplo, tornou-se um sucesso enorme, tocavam-na a toda a hora. The Barefoot Contessa,
a canção de Lara, Rear
Window… Há também Walk
On the Wild Side, a versão de Jimmy Smith, a melhor que eu
conheço…” Prodigiosa colagem musical, prodigiosa vertigem
musical, a banda sonora segue, no vórtice e no vértice, o não menos
prodigioso barroquismo da narração e das imagens, com o mesmo fôlego e a
mesma dispersão. Porque Casino
é um filme disperso, um filme gastador, que enche as margens (os mil e um
episódios, aparentemente secundários, que podiam dar mil e um filmes
diversos) para desnudar o centro, o centro trágico que é praticamente
resumido na frase inicial e na presença-ausência do personagem de L. Q. Jones.
E talvez não haja muitos exemplos de absolutismo trágico para pôr ao lado de
duas seqüências como a da morte de Nick, depois de ver matar o irmão, ou a do
corredor do hotel, onde Sharon Stone, penteada à Simone Signoret, esbanjou os
milhões de dólares até a última overdose. Uma (a da morte de Pesci) em ruído
e fúria, excessiva e operática. A outra (a que nos fala da morte de Sharon
Stone) em silêncio e vazio, minimal e surda. Se, um dia, alguém quiser saber como foram os anos
60 e 70, The Last
Waltz de Scorsese diz-lhe tudo. Se, um dia, alguém quiser saber
como foram os anos 70 e 90, Casino
de Scorsese diz-lhe tudo. “The beginning of an end?”
“the end of a beginning?”
“Say, the beginning
of the end of the beginning.” “And
if you don’t recall the singer, you can still recall the tune.” Casino é a Última
Valsa que foi possível dançar. Quem acredita no “princípio do fim
do princípio” acredita no eterno retorno. “Fantasmagoria, luzes, muito
dinheiro, uma espécie de vórtice, mas nunca sexo”. Desde New York, New York,
pelo menos, foi sempre assim. E assim continuará a ser até no inferno, que,
se não é Casino,
não sei que seja. Nota: [1] Hoje acrescentaria Bringing Out the Dead (1999). Desculpem a póstuma intromissão... |
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