RECORDAÇÕES DA CASA AMARELA, João César Monteiro, 1989 por João Bénard da Costa Recordações
da Casa Amarela. Mesmo quem não leu muito, lembra-se logo de Dostoiévski e das Recordações da Casa dos Mortos. Sabe
que não o vão levar para o canto da lareira e que a viagem não vai ser
agradável. Casa Amarela por quê? A legenda seguinte - ainda estamos
mergulhados no negro mais negro - esclarece: “Na minha terra chamavam casa
amarela à casa onde guardavam os presos. Por vezes, quando brincávamos na
rua, nós, crianças, lançávamos olhares furtivos para as grades escuras e
silenciosas das janelas altas e, com o coração apertado, balbuciávamos:
‘Coitadinhos’...”. Decorre o
genérico. Ouvimos uma flauta, sons estranhos, gritos. A casa amarela não é
uma prisão. É um manicômio. João de Deus já nos está a falar de lá, quando
diz em off um texto de Céline (Mort à
Crédit). Mas a luz chega à tela, e o que se inicia é um flashback.
Vagaroso travelling sobre Lisboa, filmada do Tejo, descobrindo a parte mais
bela da cidade, do Terreiro do Paço à Madre de Deus. Casas velhas? Como
depois corrigirá Dona Violeta “barrocas Senhor João. Isto foi casa de
marqueses e marquesas, de príncipes de Portugal”. Ninguém está a brincar,
muito menos o realizador. Durante o filme, vezes sem conta, mergulhamos
nestes bairros, em ruas, praças e becos. Tudo tão estranho, tão nosso
desconhecido. Lisboa tem um verso e um reverso. O verso vê-se do rio e é bom
para os poetas. O reverso vê-se em terra e é bom para os pintores. A cidade é
secretíssima. Quem vê caras não vê corações. Para lá das fachadas, começam as
surpresas. Fiquem os turistas com a ville blanche. Quem cá morrer sabe como
tudo é escuro. Tão escuro que, no final - quando João de Deus reencarna em
Nosferatu - João César não precisou de qualquer efeito para o enquadrar em
décor expressionista. Murnau - para já não falar de Robert Wiene - precisou
de estúdios e de grandes decoradores. Para João César, bastou-lhe colocar a
câmera, enquadrar rigorosamente, e esperar pela luz. Os milagres acontecem. O
pôster do filme - uma reprodução do quadro de Grosz John der Frauenmöde
pintado em 1918 - não foi modelo do filme. Parece, antes, cópia dele. As
artes têm, às vezes, coincidências singulares. O travelling
do rio, não acaba, por acaso, na Madre de Deus. Também não é por acaso que a
seqüência seguinte se passa numa capela, dedicada a Nossa Senhora, e que a
primeira imagem que vemos nela é a de Nossa Senhora. Vemos mesmo Nossa
Senhora antes de vermos João de Deus. É que Recordações da Casa Amarela é também
- eu tenderia a dizer é sobretudo - um filme sobre a Mãe. A Mãe é o tema
central destas Recordações. Por
isso, o final do travelling faz raccord com a imagem barroca de Nossa
Senhora. Grande plano, levemente em contre-plongée. Corte e contraplano. Quem vê a Virgem é João de Deus que conhecíamos de voz (o
longo monólogo dos percevejos) mas só agora conhecemos em carne e osso. Está
sentado na penumbra da igreja “ancestral, silenciosíssima e vazia”.
Levanta-se devagar e vai-se embora, com paragem pela pia de água benta e pela
caixa de esmolas. Depois de muita palavra, muito silêncio. É possível que o
espectador levado pela provocação - ou pela truculência - do verbo abra mais
os ouvidos do que os olhos. Será nossa culpa, não do realizador. Não se abre
um filme com uma igreja por acaso. Descobriremos porquê muito mais adiante. Mais
adiante. Após a seqüência da leiteria com o Pom-Pom e Mimi, ou seja com o
cãozinho e com a pega. João de Deus não abriu a boca durante essa conversa de
bairro, supostamente realista (até se fala do “nosso Benfica”). Gente tacanha
não vê mais nada, senão fado e futebol. Mas quando João de Deus se vai
embora, Mimi, refletida num enorme espelho oval, dirige o olhar na direção
dele e fica muito tempo a vê-lo sem que ele a veja. Mais tarde, dirá: “Vejo-o
quase todos os dias na rua ou na leiteria. Reparei em si porque anda sempre
muito metido consigo. Não fala com ninguém”. “Falo, mas não se dá por isso”,
responde João de Deus. Nesse plano do espelho, tivemos o primeiro sinal de
atenções sem palavras. Aquela que depois dirá, em tradução da Bohème,
“chamam-me Mimi”, é a primeira pessoa no filme a reparar em João de Deus, a
protegê-lo maternalmente (o espelho oval), imagem recorrente dos filmes de
César Monteiro. E aqui
faço um parêntesis cinéfilo. Se os críticos mais atentos descobriram (está no
filme a rima entre estas Recordações
e Quem Espera por
Sapatos de Defunto Morre Descalço, o primeiro filme de João César
Monteiro), não li em parte nenhuma referências à continuidade com o filme de
1975 Que Farei com
Esta Espada? Nosferatu, citado nas duas obras? Não só. Mimi é
irmã gêmea dessa outra puta do Cais do Sodré que se confessava depois da
Butterfly. Filhos dela passa por insulto. Andamos muito esquecidos dos
Evangelhos. Estas entraram com certeza à frente dos outros no Reino dos Céus. João de
Deus sai da leiteria. E a discretíssima alusão materna, evidencia-se na banda
sonora, quando começamos a ouvir o Stabat
Mater de Vivaldi. Houve um corte e João de Deus, filmado em plongée,
detém-se no átrio de uma casa setecentista, forrada a azulejos e com um chão
lindíssimo. O plano tem a duração e a solenidade para ser sacral. É uma
entrada num templo. “Eia, Mater fons amoris / Me sentire vim doloris / Fac ut
tecum lugeam” canta-se e ninguém está a jogar com palavras ou com música.
João de Deus começa a subir as escadas - grande escadaria de pedra - em plano
de conjunto aproximado. A câmera move-se da esquerda para a direita (raccord
ao eixo) e dá-nos a ver o patamar. À direita, um anjo com uma tocha e aos pés
dele uma mulher velha a esfregar o chão com uma barra de sabão amarelo. Mais
ao longe, à esquerda, um reposteiro com as armas de Portugal. Vivaldi
continua e todos os sinais estão reunidos para a encenação sacral. Falta
nomeá-la. A câmera recua e enquadra João de Deus, em pé, de costas, no alto
do lance de escadas, a certa distância da mulher. É então que diz duas vezes:
“Mãe, Mãe”. O diálogo
dos dois é cru e seco (da parte do filho). João de Deus foi ali para pedir
dinheiro à mãe, todo o dinheiro da mãe, que lho dá. Situação escabrosa, abjecionismo,
etc.? Quem se ficar por isso, não tem olhos, nem coração, nem gosto. Está é a
ver a mais bela das Pietá. Quis est homo, qui non fleret? A mesma
sacralidade preside à encenação do encontro de Mimi com João de Deus na boite:
a auréola vaneyckyana e nada de coiso[1]. Preside, depois, à via crucis do
canil (“Estou consigo”) ou ao almoço da cabidela, com aquele final sublime
(“mais luz geral se possível”) sobre o grande plano das mãos de Mimi a dizer:
“Bastar-me-á, então, enterrar ambas as mãos na teia para sentir que tudo
nasce dela”. Até que
chega a noite dos anos de João de Deus. Ele só pensa no clarinete da menina.
Mas, quando esta finalmente o toca (salvo seja e é o K.622 de Mozart), desata
a chover e todos fogem. Fica sozinha a menina, o clarinete e Mozart. Mas
durante toda a “festa”, Mimi seguiu sempre de longe João de Deus. E é pelo
sopro de Mozart (como pelas gárgulas jorrantes das fontes) que vamos até ao
grande plano de Mimi, já dentro de casa. Um “plano louisebrookiano” (foi João
César quem lhe chamou assim). E diz oferecendo-se: “É a minha prenda de
anos”. Mozart cede a Schubert. Primeiro o violoncelo, depois o violino, por
fim o piano. Ela tira as meias. A câmera enquadra João de Deus contra a parede,
sentado na cama do quarto dele. João de Deus pequeno, à esquerda. Sobre a
cama, as botas da fotografia de Stroheim. E enquanto continua o Trio, a câmera
sobe muito devagar, largando o protagonista para nos dar a ver Stroheim em
corpo inteiro, vestido de oficial de cavalaria. Ouvem-se em off suspiros e
por fim o silêncio. “O que foi?”, pergunta Mimi Na seqüência
seguinte já ela morreu. Depois, há a visita ao quarto dela, tão sacral e tão
sacrílega como a visita à Madre. A boneca é a figura de substituição que a
menina Julieta não pode ser. Perdidas
todas as mães, todas as mulheres, João de Deus assume-se como pária (fabulosa
seqüência no banco de jardim, com a descrição da morte da Madre de Deus) e
depois assume-se como esse Stroheim que contemplara a sua única noite de
amor. É Stroheim quem domina uma Lisboa em ruínas, onde o Carmo do Tanhäuser
rima com o Chiado esventrado. E, na
corrida circular do manicômio, João de Deus faz o percurso que liga Lívio
(Luís Miguel Cintra) ao realizador, que o dirigira vinte anos antes, nos Sapatos, “Nunca me tinha ocorrido como
a eternidade pode ser tão amarga”. “O que tens feito nestes anos todos?”.
“Tenho estado por aqui à tua espera”. “À minha espera?”. O maior
dos homens de teatro da geração de 60 e o maior dos homens de cinema da mesma
geração, reencontram-se dois, não mais sendo um só. Inventaram o espaço para
matar o tempo e inventaram o tempo para dominar o espaço. O bom senso acabou
por prevalecer. Deus dar-lhes-á vida. E o plano mais comovente sobre uma
geração é esse de Luís Miguel Cintra, vendo João de Deus afastar-se, com um
movimento de garganta, como se engolisse em seco. Vinte anos
vivemos na casa dos mortos, ou na casa amarela João César Monteiro/João de
Deus ressuscitou dela para contar a todos nós. É uma “comédia lusitana”. É
uma tragédia portuguesa? É um filme de gênero? Como João de Deus responde a
Henrique Viana que lhe pergunta se A
Morte de Empédocles (a de Hölderlin, ou a de Straub?) é policial, a
réplica exata é a dele: “Não! É celestial”. Desse gênero é que é o filme. Sozinho
diante das estrelas, como no final de Silvestre,
este é um filme sagrado. É também - uma vez mais - um grande filme romântico.
Esgotaram a imaginação a inventar-lhe parentescos. Leiam o Cesário, o do Sentimento de um Ocidental: “A dor
humana busca os amplos horizontes / tem marés, de fel, como um sinistro mar”.
É possível viajar por estas Recordações
com o poema de Cesário como lâmpada de bolso. Quem se desorientar, orienta-se
com ele. Para chegar ao mesmo verso e à mesma conclusão. O lençol de Dreyer e
a sombra de Murnau. Meus filhos, são filmes destes que, pousando, vos trarão
a nitidez às vidas. A todas as vidas. Nota: [1] Coiso também pode ser entendido por “coito”,
em Portugal [n.d.e.]. |
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