CARTA DE UMA DESCONHECIDA, Max
Ophüls, 1948
por João Bénard da Costa
Continuo
com Max Ophüls e com um filme que ele fez quinze anos mais tarde em
Hollywood. É Letter from an
Unknown Woman o título.
Também se passa em Viena (embora filmado em Hollywood) também provém de um
escritor austríaco (Stefan Zweig). Também acaba com um duelo. Só que nesse
filme as regras e o jogo são diferentes.
Lisa (o mais magoado papel de Joan Fontaine) é uma rapariga da classe média
que sonha ser artista. Na mesma casa onde ela mora, vive um pianista célebre,
Stefan Brand (Louis Jourdan) um bom bocado mais velho do que ela. Quase desde
criança, ela apaixona-se por ele: o grande artista, o gênio. Nunca lhe fala,
poucas vezes o vê, mas alimenta-se dele e da música dele. Tanto e tão
loucamente que, quando cresce, recusa qualquer casamento. Só pode casar-se
com o seu pianista, pianista que nem sabe da existência dela e quase todas as
noites tem uma mulher diferente.
Mas um dia encontram-se e conhecem-se. Fazem uma grande viagem num comboio
que não sai da estação num parque de ilusões em Viena. Quando
virem o filme, perceberão que essa mágica viagem a levou até ao fim do mundo.
Nessa noite, Lisa quebra todas as regras do seu jogo virginal e torna-se
amante de Stefan. O céu dura pouco: Stefan tem uma tournée, daqui a uns dias estará de volta. Despedem-se na estação
de comboios, que sempre foi o lugar das despedidas para nunca mais. Nunca
mais Stefan voltou e nove meses depois quem chega é o “filho do pecado”.
O destino deu segunda hipótese a Lisa. Um senhor rico, muito rico mesmo, que
gostava dela e até aceita ser o pai da criança. Mas, nestas histórias, há
sempre, uma vez, outra vez. Na ópera, durante uma ópera de Mozart, Lisa
reencontra Stefan, aliás assaz decaído. Tudo parece reatar-se e a tal ponto,
que, apesar do marido ser magnânimo, Lisa sai de casa para outra noite de
amor com Stefan até descobrir, no princípio dela, que Stefan nem se lembra
que ela existiu e lhe repete o mesmo número que jogara anos atrás na noite
mágica.
Não interessa muito contar que Lisa morre, mas interessa saber que, se
sabemos toda esta história, e se a sabemos pela boca e pelo olhar de Lisa, é
porque ela escreve do leito de morte a carta de uma desconhecida. Para além
da carta, só ficamos a saber que o que Stefan esqueceu nunca foi esquecido
pelo criado mudo dele, que acompanhou toda a história e percebeu todo o drama
muito antes dele. Só ficamos a saber que Stefan, que se preparava para fugir
ao duelo para que o desafiara o marido de Lisa (histórias de honra não eram
para gente como ele) depois de ler a carta acaba por aceitar o duelo. O
desfecho é imaginável.
Em Letter from an
Unknown Woman, quem quebrou a regra foi Lisa, mas quem
aceitou a estúpida honra para se lavar do que fizera ou do que fora, foi Stefan.
Lisa transgrediu a regra porque viveu sempre num mundo onírico e, por isso,
numa notável análise do filme, Stanley Cavell tenta uma singular leitura
freudiana desta obra. “By the
time you read this I may be dead” escreve a desconhecida
na sua carta-filme. “Why
is she death-dealing?” pergunta Cavell.
E é a grande pergunta que se pode fazer às personagens dos grandes
melodramas, onde o único horror é o horror de acordar e onde por isso o jogo
com a morte é o único jogo possível.
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