AUDAZES E MALDITOS, John Ford, 1960 por João Bénard da Costa “A shadow wing stand over this court since the beginning”
diz Jeffrey Hunter lá para o fim do filme, quando a balança começa a
inclinar-se a seu favor ou a favor do homem que defende. Pode-se
extrapolar esta frase e dizer que a “asa sombria” paira não só
sobre o tribunal, mas sobre o filme, talvez o mais noturno e o mais
negro dos filmes de Ford. Mas não emprego nenhum dos adjetivos, nem
julgo que Ford tenha empregue esses termos, a pensar no negro
protagonista ou em sentido metafórico. Sergeant Rutledge é
literalmente a obra de Ford em que as cores sombrias mais predominam,
direi, correndo ainda o risco de ser mal interpretado, o mais preto e
branco dos seus filmes, mau grado a cor. Para
acabar de vez com o equívoco possível de “duplas leituras”, começo por
dizer que não embarco nas águas dos que viram neste filme a primeira
obra anti-racista de Ford, e tanto contrapuseram a nobreza do personagem
de Woody Strode ao típico personagem tantas vezes representado na obra
dele por Stepin Fetchit, o “preto pateta alegre”. Embora Ford tenha
navegado nessas águas (“It was the first time we had shown the Negro as a hero”), embora Woody Strode o tenha dito também (“You’ve
never seen a Negro come off a mountain like John Wayne before. I had
the greatest Glory Hallelujah ride across the Pecos River that any black
man ever had on the screen. And I did it myself. I carried the whole
black race across the river”), e embora qualquer deles tenha
indiscutível razão, não julgo que Ford seja menos ou mais racista com
Strode do que com Fetchit. Aborda os negros, como os índios, e talvez
como os brancos: do verso e do reverso, mas sem que jamais tenha caído
no clichê ou no esquematismo duma personagem. Só que não pode ser
elidido (e Ford teve a suprema honestidade de não escamotear a questão)
que, para as personagens do filme, para nós, espectadores, e para o
próprio Strode-Rutledge, o fato do protagonista acusado ser negro é
determinante. A “asa sombria” é essa determinação que impede a todos o
juízo sereno, ou a visão objetiva. Estamos no escuro de muita coisa: das
reações provocadas pela diferença de raça, pelos crimes sexuais, pelo
crime, pelo sexo, pelo texto escrito (“o livro”), pela imagem. De todas
essas escuridões, é feito Sergeant Rutledge. Antes
de desenvolver cada um desses aspectos, noto que esse título[1] (que em
Portugal não fugiu ao adjetivo que o juiz tanto quis evitar no tribunal e
que Ford deliberadamente não usou) foi escolhido à última hora. O
título inicial era Captain Buffalo (nome da canção do filme),
personagem verídica e lendária, evocada na obra tanto por essa canção,
como pela conversa explicativa a que a certo passo dá lugar. E noto
ainda a construção híbrida do filme: por um lado (o lado dos flashbacks) é um western,
com direito a Monument Valley (e a um dos melhores aproveitamentos
dessa paisagem mítica) e mais um western sobre a cavalaria; por outro
lado (o lado do presente da ação) é um filme de tribunal, muito
semelhante a inúmeros court films de Hollywood dos fifties.
E, nas seqüências iniciais, recorda poderosamente o quase contemporâneo
filme de Otto Preminger, Anatomy of a Murder, pelo modo como o juiz
prepara a audiência (e o público) para a delicadeza do caso julgado.
Willis Bouchey (mais um genial secundário de Ford) dirige-se ao público
no filme e ao público como o juiz da película de Preminger. “Given the nature of the case, it’s no place for ladies”.
E estas são evacuadas da sala, tornando-nos (a nós, espectadores do
filme) mais responsáveis porque ficamos. Embora a expectativa de
detalhes eróticos nos seja tão frustrada como às ladies do filme.
A manta com que Strode cobriu o cadáver de Lucy Dobney elide a “cena
eventualmente chocante”, numa elipse análoga à da porta fechada no
tribunal. Os voyeurs no filme são igualmente frustrados. Passemos agora às tais sombrias asas. Propositadamente, deixo o racismo para o fim e faço raccord com o sexo. Prevenidos
desde o início que o julgamento é à porta fechada para não ofender a
decência, nenhuma dúvida nos resta de que a indecência é sexual. E
imediatamente as atenções se focam na única lady que não é
mandada sair do tribunal: Constance Towers. Imediatamente, também, se
faz a fácil associação: teria sido ela a vítima da indecência, cuja
natureza nos é explicada quando os juizes, em voz baixa e dada a
presença feminina, decidem omitir a palavra violação e substituí-la pelo
número do artigo do código que à violação se refere. Ou seja, começamos
com um tabu: o sexo. Mais para diante, haverá outro: a raça. A luz
obscurece sobre essa alusão sexual e começa o primeiro flashback: preparamo-nos para ver a loura Towers violada, essa “very atractive girl and rather misterious”, como Jeffrey Hunter lhe diz na seqüência do comboio. E o flashback
parece preparar-nos para isso: o belo beijo dos protagonistas, o vento
e, por fim, num grande plano relativamente insólito na obra de Ford, a
mão negra na boca da rapariga. O flashback acabou, aproveitando o advogado de acusação para reforçar a nossa convicção (“viciously sprang at you... brutally grabbed at you...”). O segundo flashback
é ainda mais esclarecedor, ou mais obscurecedor. Na noite da
tempestade, Towers e Strode têm que partilhar a casa deserta: o torso nu
do sargento, a ferida, a cama, vão acentuando a tensão física entre as
duas personagens, sendo explícita a carga erótica, crescendo tanto
quanto a tempestade. A todo o momento esperamos o desfecho físico e não é
ilícito supor que esse desfecho também foi esperado (temido ou
desejado) pelos protagonistas. De certo modo, desde esse momento,
Constance Towers está contaminada. Se, depois, tanto faz para ilibar o
acusado, é porque ela própria carrega dessa noite alguma culpa. Isto mesmo nos é mais claramente explicado no terceiro flashback, quando sabemos que não foi Constance Towers a violada, mas a pequena Lucy Debney. Os avisos da mulher do juiz à miúda “so young and so lovely”
tinham alguma razão de ser, para quem achava que podia andar vestida à
Lady Godiva. Lucy é um objeto erótico, exposto. Só que, como depois
saberemos, não foi o negro quem destruiu “o símbolo da pureza” mas o
velho igualmente atraído pelo cheiro a sexo de Lucy. Que esse símbolo
seja uma cruz, igual a tantas outras, é mais um ponto de referência
importante; porque a presunção da culpabilidade de Strode vem
principalmente, do fato dele não ser igual a tantos outros, de ser um
negro. Assim, o tabu sexual e o tabu racista se cruzam permanentemente
ao longo do filme, tanto para os que mais declaradamente são racistas e
puritanos, como para os que tentam omitir a existência desses reflexos
neles. Mas o medo e o desejo de Constance Towers e o medo de Jeffrey
Hunter (que, durante a cavalgada, várias vezes, por olhares e meias
palavras manifesta a sua apreensão e a sua pouca vontade de deixar o
sargento e a rapariga sozinhos) explicam que, num segundo grau, todos
participam dessa obscuridade ancestral. Por isso, Rutledge nunca confia
inteiramente neles. O que é patente quando Jeffrey Hunter o acusa de
ignorar a longa amizade que os une e de não ser cooperativo. A pergunta
do sargento: “What does it all add up to, sir?” é bem
esclarecedora dos limites dessa amizade e da diferença que separa os
dois homens. Porque Strode é, do início ao fim (a sua espantosa
implantação telúrica) a única personagem que assume totalmente o corpo e
essa assunção é, tanto quanto a sua cor, o que o distingue de todos os
outros. O capitão Buffalo é um homem com pele de animal, a pele que os
civilizados brancos tentam ocultar que trazem. Passemos
à lei e ao livro. Se os brancos se regem por regulamentos (mais tarde,
no tribunal, o juiz expressamente consulta o código, antes de decidir
pela evidência) para Strode e os outros negros do filme o espírito (na
totalidade da palavra que, em Ford, na boa tradição católica não exclui a
carne) manifesta-se na aproximação física. Basta ver para saber: não é
preciso ler. E uma das maiores astúcias do argumento e do filme é que
nós também oscilamos entre as imagens e as palavras. Muito antes da
célebre tirada de Strode, quando o advogado lhe pergunta porque é que
fugiu (“It’s because the Ninth cavalry was my home. My real freedom.
And my self-respect. And the way I was desertin’ it, I wasn’t nothin’ but
a swamp-runnin’nigger. And I ain’t that! Do you hear me? I’m a man!”) já tínhamos visto o suficiente para saber que Strode era um homem e não um nigger
(e foi a primeira vez que tal termo passou à censura num filme de
Hollywood). Mas, como toda a gente no tribunal, não nos bastou ver para
crer: tivemos que ouvir. Esse fabuloso plano da revolta de Strode, em
leve contre-plongée, talvez o seu plano mais feroz, é o que nos
convence, porque nos intimida, como intimida o tribunal. São os textos,
os discursos, não as imagens o que finalmente conta. Paradoxo supremo
deste filme em que a imagem tem o máximo valor expressivo, nas noites da
lua ou nos enquadramentos do protagonista fora e dentro da sala do
tribunal. Sergeant Rutledge é o filme do conflito entre essas duas instâncias: as de Monument Valley e o espaço confinado do tribunal. Nota: |
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