ANA, António Reis & Margarida Cordeiro, 1982 por João Bénard da Costa Miranda: a túnica inconsútil Confesso
que estou bastante longe de partilhar do sentimento algo generalizado
entre a crítica portuguesa de que estamos a viver, em 1982, um ano áureo
da história do cinema. Acho mesmo, sem ofensa para ninguém, que só
santa ignorância da história passada permite que se generalize dum
Schroeter, sempre magnífico, do Parsifal, de Syberberg, do último Straub, do último Godard, do último Rohmer, do último Demy, do último Carpenter ou do E.T., de Spielberg, para o comum da produção, dos jovens turcos, aos vários geists
ou aos velhos rotineiros americanos que não merecem tantas vitórias. E
mais confesso que semanalmente me estarreço perante o número de
obras-primas (e Deus sabe que os exageros me não assustam) que, segundo a
mesma crítica, semanalmente, também se estréiam em Lisboa. Peso,
pois bem as palavras, quando digo o que vou dizer: não julgo que haja
em toda a história do cinema português um ano a pôr a par do de 81/82 em
que, entre um Outono e outro, se estrearam quatro filmes dos maiores
filmes de sempre: Francisca, de Manoel de Oliveira, Silvestre, de João César Monteiro, A Ilha dos Amores, de Paulo Rocha, e Ana,
de António Reis e Margarida Cordeiro (os dois últimos ainda
insolitamente inéditos comercialmente entre nós). Houve ainda mais
algumas obras de mérito, mas a esses quatro não hesito em classificá-los
de obras-primas. Estarei eu, por meu lado, a exagerar? É sempre
possível, mas se o dissesse, mentiria. E vou mais longe: do que conheço
da produção mundial desta colheita de 82, tais obras são do melhor,
senão o melhor. Não
costumo pecar muitas vezes por chauvinismo. Mas não deixa de ser
ironicamente triste que o Festival da Figueira tenha passado ao lado de Ana, premiando a obra que em Valladolid ficou muitos furos abaixo desta. A justiça ficou ao lado. De Ana vou falar: Filmado
em Trás-os-Montes, podia-se supor que os autores iriam continuar a sua
admirável obra anterior, a que tinha por título o nome da província. Se
num sentido fundo a continuam (como continuam Jaime, seu primeiro filme e adiante explicarei porquê), no sentido das expectativas, nada de menos exato. Ana é o contrário de Trás-os-Montes, poder-se-ia dizer o anti-Trás-os-Montes. Nesse
filme, o olhar dos autores era sobretudo um olhar terrivelmente
nostálgico. Da invocação-chamamento do pastorzinho do inicio à imagem e
ao som do comboio final, o percurso (a peregrinação, dizendo melhor) era
sobre o que se perdeu, o que vive na memória e na saudade, sobre as
raízes que vão ser arrancadas e a interpenetração da magia e do real,
que se sabe perdida. Trás-dos-Montes é o filme do jamais,
um poético adeus, uma litania lancinante. O olhar dos autores (jamais
subjetivado) estava do lado (ou ao lado) do olhar dos que o sabem, dos
adultos que têm ainda acesa a vela da esperança mas ignoram por quanto
tempo mais ou duvidam de mãos em que a possam depor. O olhar de Orfeu
convertia Eurídice em pedra, como todo o olhar que não resiste ao
chamamento do amor que ficou para trás. Nesse filme, centrado sobre uma
criança, ouvíamos e víamos as histórias e as paisagens que já não seriam
dela. Em Ana,
o olhar dos autores também não se subjetiva. Mas, centrando-se numa
velha (a avó, a mãe que dá o título ao filme), abre (como a
extraordinária panorâmica inicial) para uma criança, presença
relativamente discreta no filme, mas que em reminiscências lembrará tudo
o que viu e ouviu (e tateou, cheirou e gostou) dessa fabulosa
personagem, guardadora de tudo, que, como no ritual do batismo, lhe
abriu o corpo e a alma para as marcas indeléveis. Ao filme da nostalgia,
sucede-se o filme da esperança, a “jeune fille” que desafia o próprio
Deus do poeta de Péguy. À peregrinação sobre a memória e a saudade,
sucede-se a navegação reminiscente que não se abre nem se cerra mas
termina no espaço circular do lago (imagem com que se inicia a morte de
Ana, imagem com que se inicia o “nascimento” da criança). Ao filme do jamais, a obra do para sempre.
Ana, através do seu corpo e do seu sangue, viverá no olhar maravilhado e
maravilhoso de Alexandre. A sua morte é ressurreição. Progressivamente, e à medida que ia vendo o filme, duas obras me vinham à memória: Como Era Verde o Meu Vale, de John Ford, e Stars in My Crown,
de Jacques Tourneur, dois dos mais belos filmes de sempre. Mas qualquer
desses filmes era narração de uma criança, que recordava um passado
para sempre perdido: “how green were their valleys”. Isso permitia ao
espectador uma identificação, um terreno, já que o olhar desse miúdo era
o fio de Ariadna nos labirintos do tempo. Em Ana, essa
identificação é recusada (a esse nível), mas devolvida e decuplicada
pela certeza de que esse testemunho se não esgota na oralidade ou na
visualidade. É uma aprendizagem mais funda, mais radical, que vem
do céu (imagem inicial) à terra e à ponte, que o cavaleiro atravessa
por duas vezes em movimentos diversos (saberemos depois, que à procura
da ama, do leite, para uma nova vida). Tudo
começou num dia “em que a neve e o vento eram mais puros”. E com uma
invocação: “Sob o teu olhar, Mãe, a natureza continua o indizível”. Na
seqüência seguinte, vê-la-emos (essa mãe), entre os símbolos
primordiais, dreyeriana, muito lenta, a olhar para a noite e a chuva lá
fora (o plano rima com o do final, do último olhar através da janela, na
noite do nascimento, como no dia da morte). Essa
figura - a da Mãe - vai dominando todo o espaço da casa, tratado como o
de uma natividade (gruta, estábulo, pai, os animais do presépio -
burro, vaca -, sem que nenhum som ou imagem seja símbolo, mas todos
perfazendo o renovado mistério da vida nova). Em off, a morte da
mãe e o menino, até à entrada da ama, com que se perfaz o ritual. Há
esse discretíssimo nu, o manto (inadjetivável composição de plano), a
capa, a almofada encarnada sob os pés. E em plano fixo esse movimento
muito lento do corpo que amamenta (e simultaneamente é alimentado),
quase só perceptível pelo bater das mãos. O máximo do hieratismo, o
máximo de esquematização, o máximo de poesia. Pode-se dizer que a ama dá
e não dá de mamar: transmite, eroticamente, um corpo a outro corpo,
transfusão de leite, como se fala em transfusão de sangue. E o plano
dura, dura como todo o ritual seguinte e a sua paleta de cores (as
frutas espalhadas pelo chão, a cama esquecida, o édredon verde, o
banho do bebê na selha). Parece que há pessoas (Tolstói dizia ser uma
delas) que se lembram pela vida fora dos primeiros dias e meses,
furtados aos comuns dos mortais. Esses planos parecem comparticipar
dessa crença. Sem que nada os subjetive, parecem narrados pela criança
que nasceu, como se o filme fosse um enorme flashback iniciado, no fim, junto à imagem oval do lago. Depois, a terra, as cores, a passagem do tempo. Sobre os montes escuros, ao poente, um travelling
vem apanhar a um canto da imagem Ana, desproporcionada e veneziana,
como uma figura de Bellini, para contar a história do eclipse: “Fazia
frio. Todo o silêncio caíra sobre o mundo(...). Alguns comentavam o que
tinha acontecido calmamente, mas eu não estava sossegada. Eu conhecia a
noite, mas aquela escuridão imensa, aquele frio súbito era como uma faca
no meu peito.” E a imagem não ilustra, não comenta, abstém-se da mínima
retórica. A magia entrou no filme num travelling da sombra à
luz, inverso à narrativa. Magia não do fenômeno (ou não só) mas da
imagem, essa sim, magia suprema. Se o eclipse é tão natural como a
decomposição do espectro solar da seqüência seguinte, o que não é é a
imagem, o écran vazio e branco, quando se abrem as janelas. Reinvenção
do cinema, desta “escuridão imensa” aprendida como uma lição que vai
ecoar depois no longo dissertar de Octávio sobre os barcos e os
Fenícios. Nesse
fabuloso plano-seqüência (mais uma vez demoradamente fixo) a avó ocupa
um canto, com a dobadoura, e o miúdo ocupa o outro. Ela não se mexe,
quase ausente. O miúdo pergunta apenas: “O que é a Mesopotâmia?”.
Fundem-se os saberes e as culturas até à mudança de plano. Tudo são
hipóteses. E a “lição” continua sob o leitmotiv constante dos
princípios masculino e feminino (jangada-pelota, barco de vida barco de
morte) enquanto a avó recebe da rapariga os ovos de pata. Depois deixa-se de ouvir a voz de Octávio e este entra sozinho na igreja, num raccord
abrupto permitido pela imagem do carvalho, ao fundo da porta aberta do
templo românico. Todas as imagens matriciais foram reunidas. No mundo
original e originário vai entrar o prazer. Por aqui (porta da igreja, plano dos morangos, das melancias, travellings incessantes sobre campos de matizados, o banho das mulheres) Ana estabelece essa continuidade com Jaime e Trás-os-Montes
de que acima falei. São as raízes impossíveis de arrancar, a terra na
sua mais poderosa imagética telúrica (dos poemas gregos a Dovzhenko) que
povoavam a “loucura” de Jaime e os contos de Trás-os-Montes (a seqüência do domus
de Bragança). Mas António Reis e Margarida Cordeiro guardam-se de
visões idílicas. Ou melhor dito, sabem que os jardins do Éden são também
os da árvore do bem e do mal. Um copo que se parte. E
sobre o miúdo doente “que bem guardado parecia” há os fantasmas “dentro
de si mesmo”, “de que ninguém o pode defender”. “Preso às lianas da sua
vida inteira”, mundo de eclipses, de luzes, de mistérios, de nomes,
entra no sonho, um dos mais belos sonhos do cinema, suscitados pelo
gesto catártico do copo quebrado. É o bando dos pássaros, tão rápido
quanto ameaçador, são as rochas, o abandono (“oh, como se abandonava!”);
os terríveis leitos dos rios já secos das antigas mães. Até regressar a
imagem da Avó, guardadora de tudo, até desses sonhos. E a magia continua nos feirantes associados à convalescença (como em Stars in My Crown o estavam à doença) com a rapariga na bola, o piquenique das melancias, o fabuloso raccord
das frutas com os gansos. A ligação entre o olhar puro e o olhar
perverso, o grande onirismo depois da grande paz. O espetáculo. Espetáculo
que se funde e difunde, depois, nos campos amarelos, nas espigas, no
trigo, que já participam dessa tonalidade onde o sonho e a cultura
penetraram. O ritmo do filme acelera-se lentamente (há a primeira imagem
dum morto) como se a magia se propagasse a tudo e tudo fosse diverso,
permanecendo único. A voz off fala-nos de “jóias de folha de
centeio”, “jóias de insetos torturados” e a metáfora não dobra
retoricamente a imagem, desposa-a. Só então percebemos como desde o
sonho tudo foi contaminado por outra luz em contraponto da evocação
crepuscular da Mãe Ana. Esta, recordando um episódio antigo, repartia as
luzes e as sombras. A criança, despertada do sonho para a magia do
espetáculo e a magia da vida, “banha” tudo na luz onírica. No seu olhar
desperto (jamais coincidente com o da câmera) tudo se abre em maravilha,
como a avó lhe ensinara ao evocar o eclipse. Os fios de água, as folhas
de centeio, os insetos, introduzem ao mundo onde natura e cultura se
entrelaçam. E a música (Bach) entra no filme, numa figura análoga à de Trás-os-Montes quando ouvíamos o Stabat Mater de Pergolesi. Só que, mais uma vez, o percurso é de sinal inverso. Em Trás-os-Montes,
Pergolesi “preparava” para a partida do protagonista, para o comboio,
para a demoradíssima crispação das coisas que se despedaçavam. Em Ana, Bach religa (no sentido etimológico da palavra religião) o ciclo de magia ao da morte e este ao da ressurreição. Bach
(e a reaparição do cavaleiro) preparam para o último passeio da Mãe
Ana, para o espaço criado pela figura, para as “árvores nobres”. Não no
sentido de algo que se perde mas no sentido profundo de transmissão. Mãe
Ana aproxima-se do lago oval e murmura o nome de “Miranda”, a vaca,
sinal da sua ligação indestrutível ao ciclo vital. A morte entrou no
filme (o azul, as mãos com sangue) não como destruição, nem sequer como
aceitação, mas como ascensão suprema duma linha que não se vê quebrar. Tudo
se torna ainda mais suave e azul, até que ela sai do campo (após o
longo e último passeio final), ficando a imagem da paisagem onde para
sempre se inscreve. Resta-lhe percorrer os passos iniciáticos da morte,
num ritual em tudo paralelo ao do início e do nascimento. Dá de comer a
Miranda, sobe vagarosamente as escadas (que antes a víramos subir
lestamente) e entra na casa de onde jamais sairá. Passa-se da aurora ao
crepúsculo, mas como cotidianamente esse percurso se refaz. No dia
seguinte haverá novas auroras e novos crepúsculos e, como queria Caeiro,
nada estremece. Nada?
António Reis e Margarida Cordeiro não se pretendem tão cultivadamente
pagãos. Esses quinze minutos finais parecem-me ecoar a morte de Sócrates
como Platão a contou no Fédon. Quando os membros se lhe começam a
inteiriçar, quando o frio da morte dele se apodera e a cicuta perfaz o
efeito mortal, Sócrates não dita aos discípulos uma última máxima, nem
lhes revela uma última mensagem. Limita-se a recomendar-lhes que não se
esqueçam de pagar o galo a Asclépio. Só depois se estende e morre, para
que nada fique em falta, para que nenhuma dívida prossiga. Assim, Mãe
Ana, depois de se sentar e dobrar no caldeirão (numa posição quase
fetal), depois de mandar a rapariga em sossego, depois da vinda do
médico, depois dos planos da roupa sangrenta, diz apenas: “Não te
esqueças de dar de comer à Miranda: deita-lhe feno e uma mão cheia de
centeio.” O filme fica livre, como o final do Fédon, para o não
anúncio da sua morte: Ana a correr e a chamar Alexandre, o vento, o
vento e, de novo, a imagem oval do lago. Essa serenidade inilustrável
que permitirá reordenar todo o filme de maneira diversa e voltar à
memória de Alexandre, à aprendizagem de Alexandre. Tudo é sacral e
sagrado como nas mortes que são apenas passagem, a de que Sócrates falou
aos discípulos nessa noite longa final. Mas
se nenhuma inocência pagã vem “amenizar” o filme no final, também a
aura do sagrado não cumpre a curva perfeita. Dentro dela se insere esse
genial grande plano de Octávio no automóvel (o rosto enchendo
inteiramente o écran) que nos dá a notícia duma angústia, ou duma dor,
que “cortam” (no exato sentido do termo) quaisquer acordes demasiado
perfeitos. Nem tudo continuará como dantes “quando o meu corpo apodrecer
e eu for morto” nem tudo será despido dos sinais do humano. Mas “outros
amarão as coisas que eu amei” (estou a citar Sophia). As vertentes convergem, com o vértice nesse grande plano que não obnubila o resto, mas lhe impõe a marca do protesto adulto. Só
Deus termina cada coisa segundo a sua esperança. Como dizia Píndaro.
Para os homens, continuando a citá-lo, fica sempre alguma dor quando
vogamos para a margem imaginária. Ana
é o filme dessa navegação para essa margem imaginária. Na ligação
inconsútil ao terreno (a túnica de Miranda) e na ligação não menos
inconsútil ao que uma criança recordará pela vida fora, criando ou
recriando o espaço mágico dessa navegação. Sôbolos rios, entre os rios. Alguns
dirão que neste filme nada se passa, que não há narração. Serão os
mesmos que a não saberão achar no diálogo de Platão, na ode de Píndaro
ou no Babel e Sião de Camões. “Fraqueza da humana sorte: / que quando da vida passa / está recitando a morte”. “Recitar a morte”, do Ulisses de Homero ao Ulisses de Joyce foi o único e supremo fito da narratividade. Ana
é, entre muitas outras coisas, o filme da compreensão disso. Se se
lembra na ausência, é porque o seu espaço não é o da memória, “senão o
da reminiscência”. Continuando - e concluindo - em Camões: é o filme que sobe da sombra ao real “da particular beleza / para a beleza geral”. |
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