AMARGO TRIUNFO, Nicholas Ray, 1957 por João Bénard da Costa De novo Jean-Luc Godard reaparece nas minhas histórias. Já amava - tanto e tanto - Nicholas Ray. Já tinha visto muitas vezes Johnny Guitar. Mas ainda não tinha visto Bitter Victory,
com estréia mundial no Festival de Veneza de 1957, em Setembro, mas só
apresentado em Portugal em Maio de 1958, no Éden, quando me veio parar
às mãos o número 79 (Janeiro de 1958) dos Cahiers du Cinéma.
Nesse número, saiu, por baixo de uma fotografia de Richard Burton
(grande plano da cara, com o deserto em fundo e um par de botas ao
lado), o texto que se chamou Au-delà des étoiles, “crítica” a Bitter Victory de Nicholas Ray, filme que, na mesma edição, Godard considerou o melhor de 1957. Era esse texto, era, o que começava assim:
“Havia o teatro (Griffith), a poesia (Murnau), a pintura (Rossellini), a
dança (Eisenstein), a música (Renoir). Agora, há o cinema. E o cinema é
Nicholas Ray.” Lembro-me
que li esses versos - talvez os que mais citei e recitei em vida minha -
no dia em que fiz 23 anos. Tive de agüentar quase quatro meses até os
poder confrontar com o modelo e até poder repetir, em conhecimento de
causa, “não é cinema, é melhor do que o cinema”. Depois - nestes quase
quarenta anos decorridos - quantas vezes revi eu Bitter Victory, quantas vezes escrevi sobre ele? Não sei. Mas sei seguramente que é o filme de Nick Ray que melhor conheço (depois de Johnny Guitar), que é o filme de Nick Ray em que mais refleti e sobre que mais escrevi (mais do que Johnny Guitar), e que é o filme de Nick Ray a que, subjetiva e subterraneamente, mais coisas me ligam. Dele, apetecia-me poder dizer o que Truffaut disse de Johnny Guitar. “Este filme teve mais importância na minha vida do que na vida de Nicholas Ray.” Mas sei demais para o poder dizer de coração ao pé da boca. Bitter Victory,
primeiro filme de Ray longe de Hollywood (co-produção franco-alemã,
rodada na Líbia com um fortíssimo investimento da Columbia), foi o filme
com que Ray sonhou voltar à casa triunfante, para que não mais se
repetissem azares como os que havia conhecido na sua obra precedente (The True Story of Jesse James). Em vez disso, só conheceu raivas e desesperos. Apesar dos ditirambos dos Cahiers, Bitter Victory foi um flop
e o que se passou durante a rodagem contribuiu, mais do que todo o
passado, para lhe arruinar uma reputação que, na América, já não era
famosa. Gavin Lambert, um dos argumentistas, contou que, quando o
reencontrou em Paris, no fim das filmagens, Ray vinha destruído.
“Destroçado, traumatizado. Visivelmente, tudo tinha sido horrível.
Estava num momento crucial da vida e o desastre acontecera. Os problemas
com o álcool... Foi também quando começou a drogar-se muito. Se o filme
tivesse corrido bem, toda a vida dele teria sido diferente.” Recordo
que Nicholas Ray filmou Bitter Victory aos 45 anos. Mas
foi Truffaut quem falou, a propósito de Nick Ray, dos “grandes filmes
doentes”. Essa marca da doença, como a da crise, a do malogro, são o
cerne da grandeza da obra do homem que, neste mesmo filme, pôs na boca
de Richard Burton o verso de Walt Whitman: “I always contradict myself.” E eu julgo que Bernard Eisenschitz viu bem quando, na monumental obra sobre Nick Ray Romain Américain: Les Vies de Nicholas Ray
(publicado em 1990, onze anos depois da morte do realizador), escreveu
que o que levou a esses extremos de subjetividade sobre ele foi
exatamente o ponto extremo de subjetividade em que ele próprio se
colocou. Por um lado, no cinema mais moderno, o retorno ao que havia de
fundamental no estilo clássico: a autonomia interna do plano e o choque
da sucessão deles, para, desta vez, citar Straub. Por outro, o que podia
ser “mais do que cinema”, ou seja, a relação que ele sempre viu entre
este e o inconsciente e que o levou a dar à improvisação - no melhor e
no pior - lugar enorme. “Em Hollywood, dizem-nos que tudo está no
script. Mas se tudo está no script, porquê e para quê fazer o filme?”
“Com Bitter Victory, começa a formular-se a aproximação ao cinema
como meio de expressão total. Não sendo Eisenstein e ignorando tudo dos
eruditos processos especulativos deste, Nick Ray só o pôde fazer
arriscando tudo o que sabia, cedendo em certas passagens para avançar
noutras, perdendo o controle. Bigger Than Life, o filme que teria podido ser Jesse James, Bitter Victory, Everglades
são filmes de derrapagem, tanto na medida em que são filmes sobre
personagens em derrapagem - paranóia, desejo de morte, histeria - como
porque a construção deles segue esse mesmo movimento” (Eisenschitz). Volto a mim e ao filme, para explicar melhor. Em 1958, eu vi Bitter Victory
inteiramente do lado do Capitão Leith (Richard Burton), o mais novo dos
dois protagonistas masculinos. Arqueólogo inglês, vivera, muito antes
da ação do filme, uma história de amor com Jane (Ruth Roman), que
conheceu numa visita ao British Museum, numa tarde em que falaram de estátuas egípcias e assírias. A 25 de Agosto de 1939, no mesmo British Museum,
essa história rompeu-se. Foi ele quem a rompeu, incapaz do salto no
desconhecido que a paixão necessariamente implica. Teve medo e fugiu. Reencontraram-se
três anos mais tarde, em Bengazi. Jimmy Leith era, agora, capitão do
exército inglês e tinham-lhe confiado perigosíssima missão, sob as
ordens do major Brand (Curd Jürgens). Na mesma noite, num night-club da cidade, descobre que Jane casou com o major e é agora Mrs. Brand. Quando ficam sós, Leith, como Johnny Guitar,
exprime ciúmes tardios e injustos. “Todos temos a memória curta, não
temos?” “A guerra é tão dura como o amor.” Mas cala-se quando Jane lhe
pergunta: “Jimmy, porque é que não ficaste?” ou quando ela lhe explica
que casou com Brand porque “he stand”, porque ele, ao contrário de Jimmy, não é homem para desistir ou fugir. Passado esse prólogo, em que ficamos a saber do passado (um passado à Casablanca, só que foi o homem quem fugiu e não há flashback),
Brand, Leith e os seus homens partem para a missão. Brand porta-se
sempre como covarde. Leith é desmedidamente, romanticamente, herói. Como
não estar do lado dele, do lado desse Richard Burton “terno guerreiro”,
novo demais na terra (embora ruínas do século X sejam demasiado
modernas para ele), imponderavelmente belo e imponderavelmente
comovente? Apesar dos comportamentos de malogro, como nessa noite no
deserto (“when or what”) em que matou os vivos e salvou os
mortos, como ele próprio diz. Do lado dele, não estive só eu e a
generalidade dos espectadores. Todos os homens da companhia o amavam
também, tanto quanto odiavam Brand, que nem sequer é capaz de assumir a
antiga história entre a mulher e o subordinado e nem sequer é capaz de
deixar claro que se vinga por ciúmes. Até
ao dia - sempre o deserto - em que Brand viu, distintamente, o
escorpião que avançava na areia, em direção à perna de Leith,
adormecido. E não disse nada, nem fez nada. Picado pelo escorpião, Leith
passou a ser um morto a prazo, e Brand um chefe cada vez mais
desrespeitado e desprezado. Por
fim, Leith sucumbe. Deitado no chão, podre de gangrena, diz a Brand
que, se ele não tem coragem para o matar, ao menos não o tente salvar.
Depois, vem a tempestade de areia. E é durante ela que Leith brada o “I always contradict myself”, quando cobre com o corpo agonizante o corpo do rival e assim lhe salva a vida, enquanto perde a dele. Tudo
do lado de Leith? Só muito mais tarde e muito mais velho, reparei
melhor no assombroso diálogo entre os dois homens, antes da tempestade.
Depois de ter chamado covarde a Brand, Leith vai mais longe: “You’re not a man, but an empty uniform, standing by itself.” A câmera faz então uma leve panorâmica sobre o pesado corpo de Jürgens e este responde: “Yes. But I stand.”
De novo, a câmera se volta para Burton, que olha o outro, espantado, e
fica em silêncio algum tempo (só o vento, só o vento na banda sonora).
Depois, muito devagar, em grande plano, filmado em plongée, Leith responde: “Yes... Yes... You stand... And, for the first time, I have some kind of respect for you. You’d better go.” Jürgens pergunta-lhe: “Anyone to notify?” “Mrs. Brand”,
responde, lentamente, Leith. “Diga-lhe que ela tinha toda a razão e eu
não tinha nenhuma.” O vento volve-se em tempestade, Leith salva Brand e
fica, no fim, o plano de Leith morto (o mais belo dos planos) com o
vento nos cabelos. Quando
os sobreviventes da missão regressam a Bengazi, Brand informa Jane da
morte de Leith. Mas, quando ela lhe pergunta se ele, antes de morrer,
disse alguma coisa, o marido mente e não transmite a mensagem. Ou seja,
deliberadamente oculta o que lhe podia servir de reabilitação,
recusando-se a que a sua imagem seja recuperada pela mensagem póstuma de
Leith. Diante dos homens e diante da mulher, assume o lado vil. Retira a
condecoração que lhe deram e pendura-a num manequim, o tal uniforme
vazio. Quem assim se obscurece, ilumina-se, como se iluminou para Leith,
quando, ao desejo de morte e de desastre deste, opôs o desejo de vida e
de vitória seu. Demorei anos a perceber que “eu fico” pode ser a coisa
maior que um homem ou uma mulher tem para dizer ou para dar. E que,
apesar de todas as aparências, Brand é um personagem mais forte do que
Leith. Como
Godard dizia: “O que é o amor, o medo, o desprezo, o perigo, a
aventura, o desespero, a amargura, a vitória? Qual é a importância disso
quando olhamos as estrelas?” Bitter Victory
é um filme que nunca se substancia nem se substantiza. Tem o mais
portentoso diálogo da história do cinema e as palavras não dizem nada.
Tem a mais bela música de filme que alguma vez vi (Maurice Le Roux) e
aquela música é um enigma. Tem a voz de Burton, o olhar de Burton, a
beleza de Burton e talvez em coisas tão belas não esteja o essencial. Não
sei se é um filme para além das estrelas, como Godard dizia. Mas, nas
noites e nos desertos cinemascópicos, a preto e branco, entre um homem
que morre e um homem que fica, ambos perdidos no espaço sôfrego do
grande formato, é um filme sobre qualquer coisa muito grande, situada
muito longe. Foi ao vê-lo - é a vê-lo - que pude e posso perceber o que
será esse de profundis donde clamamos para Ti. |
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