OS AMANTES CRUCIFICADOS, Kenji Mizoguchi, 1954
por João Bénard da Costa
Não sei
quem é que inventou a história do “sorriso do eterno feminino” a propósito da
Gioconda.
Sei é que há quase cem anos ninguém pára no Louvre diante do quadro, sem
observar primeiro o sorriso, depois o eterno e por fim o feminino. E, só
depois de os ter inventariado todos, é que balbucia um lugar-comum qualquer
sobre a impressão geral que a chamada Mona
Lisa, vista ao natural, lhe provocou (hoje, com aqueles enormes
vidros à prova de bala que para lá puseram, é cada vez mais difícil ter
qualquer impressão).
Visitantes mais sofisticados já não vão nessa do “eterno feminino”. Mas param
mais ao lado, em frente de A
Virgem, o Menino Jesus e Santa Ana, para descortinar, nas três
figuras, o abutre “sobreimpresso” que Freud lá viu e deu origem a um dos seus
mais célebres ensaios sobre conteúdos manifestos e conteúdos latentes.
Depois da “leitura” de Foucault de Las
Meninas (quanto a mim, completamente despropositada, mas essa é
outra história) quantos visitantes foram ao Prado, não apenas para ver o
quadro de Velázquez, mas para o comparar com a interpretação feita em Les mots et les choses?
Eu próprio já levei Os
Cadernos de Malte Laurids Brigge para o Museu de Cluny a fim de
reler as páginas de Rilke sobre as tapeçarias de La
Dame
à la Licorne
enquanto as revia com os olhos dele.
Proust foi talvez quem melhor escreveu sobre estas duplas visões: a do autor
de uma obra e a do voyeur
dessa obra. E, ele próprio, acrescentou à visão de Delft de
Vermeer o “petit pan de mur jaune”, hoje quase tão célebre e quase tão citado
como o próprio quadro, embora durante cerca de 250 anos ninguém o tivesse
visto.
É completamente irrelevante perguntarmo-nos, como fazem alguns, mais céticos
ou mais cegos, se o que Freud viu, o que Rilke viu, o que Proust viu, está ou não está na obra
em que o viram. Toda a visão é ideal (como toda obra de arte) e só por simpatia (no
sentido etimológico da palavra) nos aproximamos dela. Se bastasse ter olhos
para ver, os cegos seriam bem mais desgraçados e bem mais minoritários.
Também nada adianta perguntar - como muitas vezes se pergunta quando a evidência das
duas visões é irrecusável - se tal pormenor ou tal sentido teriam sido “premeditados”
pelo autor. A Gioconda
pode continuar a ser o “eterno feminino”, mesmo que se venha a
provar (como alguns sustentam) que o retrato não é de uma mulher mas de um
rapaizinho; o quadro de Vermeer continua a dar-nos Delft em 1665, mesmo que
em Delft nunca tenha havido tais cor-de-tijolo e tais cor-de-rosa e que
Vermeer ficasse imensamente estupefato se lhe falassem de um “petit pan de
mur jaune”. Sempre outras mãos pintaram ou escreveram pelas nossas mãos e
sempre o amador se transformou na coisa amada.
Vai muito longo o preâmbulo. A coisa amada que hoje vos queria dar a ver
chama-se Chikamatsu
Monogatari. Batizaram-na no Ocidente como Os
Amantes Crucificados (em Portugal nunca foi distribuída
comercialmente) e realizou-a o japonês Kenji Mizoguchi ou Mizoguchi Kenji. Em
1954.
Mizoguchi é um dos meus “autores de cabeceira” (esta também é re-citação) e Os Amantes Crucificados
o meu filme favorito dele.
Chikamatsu, referido no título original japonês, era um autor dramático. Sei
que viveu no século XVII (como Vermeer) e que os europeus que o leram o
compararam - sem razão nenhuma, com toda razão? - a Shakespeare. A peça que
Mizoguchi adaptou (misturada com a adaptação de outro conto clássico japonês,
esse, obra de Ihara Saikaku) conta a velha história de dois jovens de classes
sociais diferentes, apaixonados um pelo outro. Além da classe social há outro
óbice. Ela (a Senhora) é casada com o Suserano (se a tradução vale) da
oficina onde ele (o rapaz pobre) trabalha.
O filme começa por nos dar a informação (e a premonição) do que acontecia, nesses
tempos, no Japão, a adúlteros apaixonados. A protagonista vê, do seu palácio,
um casal desses ser crucificado. Por que a Cruz é símbolo de Paixão no
Ocidente e no Oriente, no judeu-cristianismo e no xinto-budismo, não me
perguntem. São outras obscuras visões, outras obscuras correspondências.
É muito depois que começa a história de amor e que Osan (a mulher) se decide
fugir ao marido, por uma noite de lua.
Começa então a implacável perseguição, por lagos, florestas, cabanas, todos
os locais do imaginário, convocáveis por paixões tão intensas quanto efêmeras,
tão labirínticas quanto fatais.
Durante a fuga, há uma extraordinária cena de amor num lago. Mizoguchi, a
propósito dela, pegou-se com o argumentista, o grande Yoda Yoshikata que lhe
escreveu quase todos os filmes. Acusava a cena de não ter intensidade
dramática. Quando Yoda, desiludíssimo, pois, na opinião dele, jamais fizera
melhor trabalho, lhe perguntou o que queria dizer com isso, Mizoguchi
respondeu: “Olha, vê, por exemplo a cena em que os amantes fazem amor no
barco, depois de terem decidido suicidar-se. É idiota e ridícula. Se querem
matar-se, é inimaginável que pensem em fazer amor. Metem-se no barco pensando
apenas na morte. Tanto basta para mostrar o estado de alma deles naquela
altura. Chegam ao meio do lago. E, subitamente, deixam de querer morrer. Não
porque tenham medo da morte. Mas porque, ao contrário dos melodramas em que
breves momentos roubados à morte são os mais doces da vida, o valor da
existência dos momentos futuros - por poucos e breves que venham a ser -
extinguiu a tentação da morte, constituiu a única e verdadeira abertura. Não
podemos morrer assim, é isso que os amantes devem pensar. É isso que é
verdadeiramente trágico.”
Esta passagem esclarece o famoso sentido da elipse na obra de Mizoguchi e o
que, através dela, o realizador queria alcançar e alcançou. Tudo cabe em momentos, onde
tudo se revela e
tudo se abre,
iluminando passado e futuro, quaisquer que sejam.
É por isso que o prodigioso final do filme - a marcha dos amantes, presos e
acorrentados, para as cruzes - é um dos mais gloriosos finais de amor da
história do cinema. É a suprema afirmação da força da vida, superando as
antíteses da arte ocidental, entre visões clássicas, visões líricas e visões
românticas.
Tudo isso, quanto a mim, está contido, muito antes, num breve plano (que
nunca vi comentado) que em Os
Amantes Crucificados é o meu “petit pan de mur jaune”. É quando
Osan decide fugir e percorre sozinha os pátios do palácio, ocultando-se para
não ser vista pelos guardas do marido. A certa altura, a lua é encoberta por
uma nuvem e fica só - como única fonte luminosa - uma janela onde persistiu
uma vela ou candeeiro acesos. Osan olha-a (um segundo) e pára. Logo,
continua. Para mim, foi nesse momento que ela teve a última tentação de ficar
e mediu (vela, interior, cotidiano, proteção) tudo o que perdia, tudo o que
nunca mais voltaria a ter. E o trocou pelas trevas exteriores, o ranger dos
dentes, a luz dos corpos, a cruz, a morte.
Imensas vezes tenho falado desse plano da janela acesa, tenho sonhado com
ele. Vária gente, que ama o filme tanto como eu, parece não o ter visto ou
não se lembrar.
Existiu só para mim? Existe mesmo? Comecei esta crônica a dizer que isso não
tem importância nenhuma. Acabo da mesma maneira. É com momentos desses, com
planos desses, que as crianças passam do tempo em que tinham medo do escuro a
amar o escuro. E só então podem aprender a história dos Amantes Crucificados
e a pouco e pouco (às vezes demora uma vida inteira) a compreendê-la melhor.
Como escreveu Camilo: “Seja assim. Eu assim fui. Todos os que vi morrer assim
foram.”
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