O FOGO DE HEPHAESTEUS por Bruno Andrade “(...) De suas forjas saíram muitas maravilhas: as flechas de Apollo, a couraça de Hércules, o escudo de Aquiles, ... ou o tom da fascinação fulleriana. Dentre inúmeros exemplos notáveis, podemos citar o plano que abre Tormenta Sob os Mares: as dimensões amplas e generosas do CinemaScope em toda a sua novidade, toda a sua modernidade inaugural. O quadro anamórfico permite a Fuller estender um olhar impassível e incontestável sobre o campo de ação: uma natureza ornada pela presença e a espessura mineral de um mar, de uma ilha que se esconde em algum ponto do Pacífico, as rochas que cercam essa ilha e o azul quase metálico do céu que cobre toda a sua extensão. A evidência ganha em penetração aquilo que perde em estabilidade - aqui apreensão e expectativa - e pudor - finalmente suprimido pelo atrevimento, por uma busca obstinada e insolente pela veracidade dos fatos que nos arremessa imediatamente, como numa investigação policial, às zonas mais letais do que nos é dado a testemunhar. Uma explosão nuclear é detonada, somos sacudidos, e o que antes parecia inalterável, preso à terra e imobilizado pela eternidade, passa a agir, a se revelar através de uma combustão pura e portanto incontrolável, uma descompressão desumana que corrompe a integridade desse cenário intocado, promessa de uma serenidade que o restante do filme seguirá adiando. Serenidade furtiva a um sentimento quase insuportável de aflição, crueldade e violência; sentimento que se instala por coação, de todos os lados e por todos os poros dos eventos retratados pelo filme. A atmosfera irrespirável surge de uma incandescência atribuída às circunstâncias ignóbeis que cercam e determinam a explosão. Eis a quintessência do gesto de Hephaesteus, pintor da guerra e de todas as atmosferas desumanas que exigem do homem, segundo a definição de Jacques Lourcelles, “um sobressalto derradeiro de energia”, “a exploração dos limites físicos e mentais da resistência humana”[1]. Liberada por essa explosão está toda a arte de Fuller, uma arte que, num único golpe preciso, desprende-se do solo e das propriedades minerais que a constituem para culminar em algum ponto dos céus e se perder em meio à atmosfera que condicionou sua queima. Estaríamos cometendo uma falha indesculpável, porém, se estivéssemos caracterizando o cinema de Fuller pelas vias de uma agressividade que precisa furtar-se somente a um quadro pitoresco da violência inata que persegue e atormenta sua obra terminal. Estática ou deflagradora, mas sempre acordada aos instintos mais profundos dos personagens, essa violência acompanha e prolonga na sensibilidade da experiência os impulsos dos heróis mais tipicamente fullerianos. O sargento Zack, Skip McCoy, Sandy Dawson, o soldado O’Meara, Griff Bonnell, Tolly Devlin, o tenente Stock e o general Merrill: todos predestinados à hostilidade dos outros ou ao orgulho obstinado de si mesmo; todos espécimes de um mesmo mundo primitivo onde só se nasce vítima ou carrasco; todos descendentes diretos de Robert Ford, o primeiro herói fulleriano - vítima e carrasco -, o assassino de Jesse James Mas essas distinções, suas considerações e as possibilidades que abrem para atribuirmos a tais ou tais títulos a preeminência de tal ou tal papel, de nada servem para apreciarmos o que quer que seja da obra de Fuller se ainda nos escapa o essencial: o sentimento da experiência capturada no momento em que irrompe na superfície das coisas. O que é muitas vezes, arbitrária e facilmente inclusive, chamado de “violência” a respeito dos filmes de Fuller nada mais é que uma pintura eficaz e exata, esculpida à perfeição como poucas vezes o cinema foi capaz, do imprevisto, acolhido aqui na sua totalidade: súbito, insólito, arrebatador, ou uma palavra que contém todas as outras e as ultrapassa para finalmente liberá-las - vivo. Colocar-se à disposição do imprevisto, torná-lo a própria condição material de sua arte e acima de tudo não confundi-lo com o que é mera contingência de aparições inconsistentes exige de um espírito hábil uma grande mobilidade, isto quer dizer uma grande liberdade. Se mais acima dissemos que o autor se sobressai em determinados trabalhos, que o realizador se sobressai em outros, o cineasta em tantos outros e o metteur en scène em outros ainda, isso não significa que cada papel se distingue dos outros por detrimento ou omissão. Cineasta completo, Fuller o é ainda mais por saber que as necessidades de cada projeto solicitam mais de certas capacidades suas que de outras. Casa de Bambu e O Quimono Escarlate oferecem a oportunidade rara de assistirmos a um filme observado por outro, pervertido e acalentado, corroído e potencializado também, a extravagância do primeiro cedendo lugar ao romantismo do segundo, ambos compartilhando uma mesma adesão aos reflexos íntimos dos atores. A integração da cenografia ao drama obtida em Casa de Bambu, presente por exemplo na cena É desta distância que medimos a inteligência de um cineasta diante do drama humano, fonte de uma verdade essencial a partir da qual o dramaturgo extrai e seleciona os eventos que mais tarde serão consolidados pela exatidão de suas mise en scène no mundo físico e material (é desta forma que o Skolimowski de Classe Operária, muito mais que o Godard de Passion ou Je vous salue, Marie, aparece como o verdadeiro e digno herdeiro de Fuller). Essa inteligência cênica, essa solidez dos fenômenos descritos por uma mise en scène fiel aos tumultos que a assaltam de momento a momento, trepidante porém desbravadora, incapaz de isolar a nobreza da embriaguez, a elegância da euforia, a lucidez da loucura, a exceção do excesso; essa inteligência, eu dizia, encontramo-la em toda sua curiosidade e insatisfação, em toda sua cólera neste experimento em selvageria que é Dragões da Violência. Como em Run of the Arrow, como Há em Dragões essa cena admirável em que sentados a um piano vemos Barry Sullivan, pistoleiro notório do velho oeste tornado homem da lei, e Barbara Stanwyck, proprietária de terras e de cabeças de gado cuja ascensão foi sustentada por um esquema de corrupção que enriqueceu todo um condado. Ele confia a ela seus sentimentos de remorso, a infâmia do título que o persegue (“a melhor pistola do oeste”) contraída em cada veia de seu rosto, nos gestos que executa com uma austeridade que parece vir do fundo dos tempos, no olhar que carrega em si o precipício do qual todos os homens como ele são feitos. Remorso, infâmia, e ao mesmo tempo aceitação de si, daquilo que é e não pode deixar de ser, daquilo que já fez e sabe que tornará a fazer, e que fará ainda por cima ao irmão da mulher por quem se apaixonou, essa mulher que está ao seu lado, aquela que tudo - suas vidas, suas famas, suas sinas - parece conspirar para afastá-los, ao mesmo tempo em que tudo - suas forças, seus destinos e a intensidade com que amam - acelera a colisão entre suas raças (cf. o início do filme). O dramaturgo em Fuller desenvolve a cena, da qual descrevi em conteúdo aquilo que é encenado em um crescendo de acontecimentos ricos e surpreendentes, de tal forma que o cineasta Fuller possa abordá-la de maneira exemplar: a realidade vista à distância, a câmera afastada da cena como se esta estivesse sendo enxergada do outro lado do espectro, numa eternidade que conserva sua complexidade e variedade intactas. “Como sempre no grande cinema”, escreve Jacques Lourcelles no seu texto sobre Riccardo Freda, “um julgamento é portado, mas pelo silêncio e no espetáculo”. Uma certa “condição eterna do homem” foi o que escrevi acima; talvez quisesse dizer “um certo estado da civilização” para assim poder chegar ao “trágico em estado puro”[5] que finalmente se conforma, em Fuller, a uma descrição de patologias degeneradas e por isso mesmo fascinantes. É justamente a iminência de um limite moral e material de uma civilização em estágio avançado de degeneração que serve de marco limiar à sua obra, e para tanto basta lermos suas declarações a respeito de Baionetas Caladas[6] na entrevista dada a Louis Skorecki em agosto de 1963, publicada na edição de dezembro 1963-janeiro 1964 da revista Présence du Cinéma. Somente um “jornalista habitado por uma exigência de honestidade sob todos os planos”, segundo a definição de Jean-Claude Biette, poderia se revelar tanto como pessoa Nesses momentos uma verdade de tipo elementar se impõe - áspera, crua, potencialmente ofensiva, não atenuada por um olhar convalescente, frouxo e incapaz de recebê-la na sua natureza original. Como o Lang de Vive-se uma só Vez, como o Walsh de The Naked and the Dead, como os Straubs em Othon, como Brisseau Notas: [1] Dictionnaire du cinéma: Les Films, Paris: Laffont, 1992, pp. 900-901. [2] Idem, pp. 768-769. [3] Jean-Claude Biette, Qu’est-ce qu’un cinéaste?, Trafic nº 18, primavera 1996. Republicado em Qu’est-ce qu’un cinéaste?, P.O.L., 2000, p. 15. [4] Idem, p. 25. [5] Michel Mourlet, Trajectoire de Fritz Lang, Cahiers du Cinéma nº 99, setembro 1959. Republicado em La mise en scène comme langage, Éditions Henri Veyrier, 1987, p. 133. [6] (...) Enquanto que |
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