DONO DE SUA VERDADE

por Sérgio Alpendre

 

Diabos, eu era Park Row!


Samuel Fuller

 

Quando se escreve sobre o cinema de Samuel Fuller, parece difícil evitar a armadilha que reside no entendimento de que o estilo direto e seco do seu cinema está relacionado diretamente ao seu passado de jornalista. Por ter sido um repórter frustrado, como ele mesmo costumava dizer, utilizou algumas práticas do jornalismo em seus filmes, e com isso provocou associações diretas entre uma profissão e outra. Essa facilidade é justificada porque Fuller é um cineasta do preto no branco, como num jornal. Suas tintas são carregadas, não deixando muita coisa para as entrelinhas. O que deve ser mostrado está lá, sem filtros, nu e cru diante do mundo.

 

Contudo, sempre há algo nas entrelinhas, e talvez essa facilidade, apesar de alimentada por um procedimento por trás das câmeras (e, principalmente, na montagem), ainda não tenha sido completamente ultrapassada e compreendida por uma preguiça dos acadêmicos e críticos de ir além dela, de romper os limites que essa comparação pode estabelecer. Por isso, assim como Fuller ia sempre além de seus limites, ficando sujeito ao risco, invariavelmente, nós, amantes de seu cinema, também temos que entender além da óbvia comparação, procurar nos meandros de sua técnica prodigiosa e imperfeita o ímpeto de sua maneira de filmar, a verdade que ele busca sempre com obstinação inigualável. Não a verdade de todos, essa verdade inatingível, mas uma verdade que é só sua, que existe para o diretor e tão somente em seus filmes únicos, do pior ao melhor. Nesse sentido, podemos dizer que seus filmes são documentários, na medida que registram fatos, representam a história filtrada pelas necessidades de uma narrativa. Não qualquer história, mas simplesmente a que ele vê, sente, conclui. Em outras palavras, filmava para documentar o que sentia, o que desejava mostrar para as pessoas da maneira mais direta possível.

 

Se há uma noção de autoria no cinema, e eu acredito que há, essa noção tem que passar também pelos supostos defeitos do diretor, entender como esses defeitos podem ser superados ou mesmo integrados perfeitamente ao estilo. Do modo contrário, o não entendimento desses defeitos, e conseqüentemente sua não dominação, podem desmontar de vez a unidade artesanal de certos diretores incensados pela crítica: Christophe Honoré, Brillante Mendoza e Lisandro Alonso são exemplos recentes e perfeitos do mal que se faz ao cinema quando a expressão cênica de uma impressão pessoal da realidade é suplantada por álibis culturais que estão lá somente para sustentar fetichismo filmado, falácia que ganha da adulação absurda dos críticos uma mais do que completa aprovação. Com Fuller a história é outra. Seus filmes são ótimos, apesar dos defeitos; não tão satisfatórios, por causa dos defeitos; ou sensacionais, por conseguir fazer com que esses defeitos joguem a favor do filme - habilidade que poucos diretores têm, e Fuller é um deles.

 

No estilo reconhecidamente seco e direto, percebemos facilmente a tendência ao corte brusco, deselegante, sem uma maior preocupação com a fruição. Cortes no mesmo eixo, com angulações muito parecidas, corte de um movimento dentro de um cenário para outro movimento diferente, dentro de outro cenário semelhante, o que num primeiro momento confunde, para depois dar a entender que se trata, realmente, de duas faces semelhantes da mesma moeda. O exemplo mais claro desses cortes pode ser visto em Mortos Que Caminham. Os soldados de Merrill, que caminham pelas matas filipinas em pelotões, recebem um tratamento de montagem na base da carne saindo do moedor: em blocos uniformes, com incríveis semelhanças entre os planos, e cortes que procuram emular a ação de uma página de jornal sendo virada sem que seu conteúdo fosse lido inteiramente. Parecemos leitores com as mãos amarradas de um jornal sujeito à ação do vento. Pode causar estranheza, de filme a filme, o que é inevitável, e até certo ponto considerado um equívoco dentro da gramática do cinema. Mas existe claramente um efeito alcançado: situar o espectador no caos de uma batalha, seja das aventuras de guerra que filmou, seja nas batalhas de pequenos marginais, pessoas mesquinhas tentando viver a vida. O paradoxo é dos mais interessantes: Fuller gostava de planos longos. Sabia que os atores davam o melhor de si com esse tipo de plano, com mais tempo para desenvolver suas emoções. Ao mesmo tempo, gostava da rapidez, da brutalidade na sucessão das imagens, do campo de batalha traduzido em decupagem. Assim, em Mortos Que Caminham, alguns planos longos são sabotados por uma montagem impaciente, ansiosa, mas consciente dos efeitos que irá produzir. Temos longas caminhadas, ora perseguidas pela câmera sem interrupções, ora profanadas com inserções de um outro take de angulação ligeiramente diferente.

 

Mortos Que Caminham não é o único filme de Fuller que tem essas características. Podemos dizer que quase todos os filmes de sua carreira têm, em alguma medida, esse desejo de agilidade impresso em diversos cortes, como se fossem complementos para ilustrar uma matéria de jornal ou revista. Quando filmava com orçamentos maiores, tinha material o suficiente para brincar com diversas tomadas, ângulos quase opostos, dando uma multiplicidade de visão que, por mais paradoxal que possa parecer, não enfraqueciam o seu ponto de vista. É o caso do filme citado, rodado em scope e technicolor. Mas a regra era filmar com pouco dinheiro, e fica fácil perceber que era quando obtinha os melhores resultados. Entre 1957 e 1964, Fuller realizou alguns filmes baratos, nos quais realizou incríveis astúcias para conseguir essa mesma agilidade sem muito material bruto (obviamente, Mortos Que Caminham figura como uma honrosa exceção). Um dos maiores e mais satisfatórios exemplos dessa habilidade é sem dúvida Renegando o Meu Sangue. Rod Steiger, num dos maiores desempenhos de sua carreira, vive o soldado sulista que se rebela contra a rendição de sua região (o Sul) na Guerra Civil Americana. Em uma cena marcante, dialoga com a mãe, revoltando-se com o conformismo dela em cima de uma ponte numa tarde bucólica. Fuller retira excertos do master de um plano longo, ampliando-os em laboratório. O resultado é uma explosão de grão que casa perfeitamente, primeiro com a fúria de Rod Steiger, depois com a reação da mãe à revolta do filho. O grão vira um componente trágico, dá ares de impressionismo à cena. Lembra a visão turva de um raivoso. Com esse efeito inusitado, consegue atingir em cheio a emoção dos personagens, revelando uma verdade que parecia impossível de emergir não fosse as obrigações de contornar as limitações financeiras.

 

Mas o grande filme de Fuller é O Quimono Escarlate, outro em que não há a menor preocupação de disfarçar as ampliações. As explosões dos grãos estão lá, desta vez sem conseguir uma ligação direta com o que acontece. Elas aparecem como ruídos, deixando entrever uma necessidade incompreensível de aceleração. Essa ansiedade inexplicável faz com que seja também o maior filme errado da história do cinema. Errado na forma, bem entendido, com cortes que parecem nos tirar da ação e nos jogar para um outro lado, um outro clima. Assim como Mizoguchi recuava a câmera para poupar o espectador de testemunhar o sofrimento dos personagens, Fuller encontrou, acidentalmente ou não, sua própria maneira de quebrar a possibilidade de chantagem emocional. Não é difícil chorar vendo este filme bárbaro, e parece impossível saber se essa emoção viria se não existissem esses erros (na falta de palavra melhor), se víssemos os planos longos sem as interrupções ou ampliações. Teríamos uma síncope emocional ou conseguiríamos um distanciamento maior? Deixar o espectador inquieto, sem saber para onde a montagem o levará, é outro efeito que o diretor buscou em toda sua carreira, mas que em O Quimono Escarlate alcança sua culminação e sua melhor encarnação em película. A Nouvelle Vague, com seus cortes bruscos e cerebrais, não foi tão longe quanto os instintos fullerianos, e é aí que reside o maior mistério de seu estilo metteur en scène versus montador (não se iludam, Fuller controla a montagem de seus filmes com mãos de ferro); ao mesmo tempo, existe uma perfeição latente em seus longos planos, que fazem com que fiquemos torcendo para que eles não sejam quebrados por sua fúria alucinante. Um exemplo disso é aquele que mostra Christine, a pintora que ama Joe, mas é amada por Charlie, andando para o quarto depois de se despedir deste último. Ele acaba de lhe dizer que há algo errado com Joe. Ela sabe o quê. Sabe que Joe corresponde a esse amor, mas não quer magoar Charlie. Sem cortes, acompanhamos Christine, rosto pesado, tomado por uma melancolia profunda, até que ela passe por Mac, a artista veterana, conselheira e amiga de todos, que está no lavabo, porta aberta. A câmera se detém um pouco nesta última, até que ela sai do lavabo e se dirige onde está Christine. Temos, então, um movimento em direção à moça, agora já deitada na cama. Um simples movimento de câmera e temos, no mesmo filme das ampliações e dos grãos rebeldes, dos cortes violentos e apressados, que nos puxam com a mão para delírios febris, um desses momentos de gênio, equivalente ao melhor de Mizoguchi, Preminger ou Lupino. O respeito máximo ao ritmo do ator, a câmera perseguindo seus movimentos, zelosa, interessada. Por que é tão raro quem filme assim hoje em dia? É por isso que Fuller, mesmo quando se abre deliberadamente aos traços mais grosseiros e aparentemente inacabados, não pode ser descartado como um desleixado. A aparência de fragilidade de seu artesanato é inerente à sua ansiedade, é parte indissociável de sua personalidade, dá a seus filmes esse caráter errático, apaixonado, vulnerável - vulnerabilidade que, curiosamente, é a palavra que mais perfeitamente define Fuller. Ele é como um soldado que caminha num campo desolado, na mira dos inimigos. Parece se entregar à sorte, irresponsável em uma medida, desastrado em outra, sem no entanto jamais deixar de seguir uma trajetória admirável, inexorável desejo de seguir sempre em frente que é o seu.

 

Se as ampliações atingem um efeito surpreendente e vanguardista (sem exagero) em Renegando o Meu Sangue e O Quimono Escarlate, em A Dama de Preto elas chegam a atrapalhar realmente a fruição. Podemos dizer que apesar de ser um filme instigante, Fuller não chega perto do desastre simplesmente porque sua autosabotagem é fruto de uma inquietação profunda, que passa do seu ponto de vista para a forma com a qual ele deseja se expressar. Aqui as páginas do jornal viram ainda mais rápido com o vento, mas o que vemos dele é tão interessante que não abandonamos a tentativa de lê-lo. O filme justamente fala de uma rua onde os jornais ficavam na Nova York do final do século XIX, onde um editor de jornal idealista consegue vencer a concorrência desleal com carisma e paixão pela verdade, a sua verdade. A Dama de Preto guarda semelhanças incríveis com Loucura Americana, filme de Frank Capra dirigido em 1932. Estão lá a mesma câmera trôpega, a mesma montagem que desrespeita um bem fazer cinematográfico, o mesmo empenho de atores que nunca alcançaram o primeiro time (ao menos Walter Huston, do filme de Capra, chegou mais perto disso). Podemos ver, também, a mesma fúria libertina, o mesmo ar de quem quer berrar aos nossos ouvidos contra uma ordem - em Capra, o desânimo da depressão; em Fuller, a decadência do jornalismo. É por isso também que A Dama de Preto é tão desconcertante. É rápido como a prensa de um diário, cortante como um editor, opositor e utópico como um bom jornalista.

 

A comparação com Mizoguchi, cineasta mais citado neste texto, não é despropositada. Tivesse Fuller nascido com a paciência e a sabedoria do mestre japonês, tivesse em suas veias um pouco do sangue sereno dos pioneiros da dramaturgia, tivesse em sua mente um pouco da calma e da capacidade de conter seus impulsos que podemos observar em cada obra de Mizoguchi, de A Perdição de Osen a Rua da Vergonha, teríamos, sim, o mais legítimo herdeiro de seu estilo inigualável. O que temos, no entanto, é estimulante o suficiente para suscitar revisões e releituras até mesmo de seus filmes mais problemáticos (Ladrões do Amanhecer, Uma Rua Sem Volta, Tubarão), e verdadeiros mergulhos em suas maiores pérolas (Anjo do Mau, Casa de Bambu, Renegando o Meu Sangue, O Quimono Escarlate, Paixões Que Alucinam). Fuller é daqueles diretores cujo embate entre a sensibilidade de um samurai e a sede por ação de um pracinha interiorano é capaz da mais notável alquimia cinematográfica. Um diretor por quem vale a pena brigar.


 

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