MORTOS QUE CAMINHAM por Paul Agde (Merrill’s Marauders). 1962. Warner Bros.
(98 minutos). Produção:
Milton Sperling para a
United States Productions. Roteiro: Milton Sperling e Samuel Fuller, baseado
no romance de Charlton Ogburn Jr. Fotografia: William Clothier (WarnerScope,
Technicolor). Música: Howard Jackson. Fotografia 2ª unidade: Higino J. Fallorina. Montagem: Folmar Blangsted. Elenco: Jeff
Chandler (brigadeiro-general Frank D. Merrill), Ty
Hardin (2º tenente Lee Stockton), Peter Brown (Bullseye), Andrew Duggan (capitão
Abraham Lewis Kolodny, M.D.), Will Hutchins
(Chowhound), Claude Akins (sargento Kolowicz), Luz Valdez (garota burmesa), John Hoyt (general Joseph Stilwell), Charlie
Briggs (Muley), Chuck Roberson (oficial),
Chuck Hayward (oficial), Jack C. Williams (médico), Chuck Hicks (cabo Doskis), Vaughan Wilson (Bannister), Pancho
Magalona (Taggy). Com Merrill’s Marauders Samuel Fuller terá
enfim realizado seu primeiro filme, um filme de sangue e desonra, de glória e
de lama, um filme de homem. Não poderíamos deixar de considerar, com o
auxílio da lucidez, suas realizações precedentes como tentativas fulgurantes
ou tímidas, os rascunhos de um filme completo que seria um dia a confirmação
total de seu gênio: Merrill’s Marauders
é portanto “o” filme de Fuller. O roteiro
tem pouca importância. A aventura dos Marauders, esses três mil heróis que bloquearam
a rota dos japoneses na Birmânia, é ao mesmo tempo real e sonhada: ela se
desenrola na História, isso quer dizer num tempo e num espaço definidos, mas
ela se situa sobretudo fora dos tempos costumeiros e das terras desbravadas. Fuller,
como Lang e Cottafavi, não é apenas um homem que tem os pés sobre a nossa
terra, é sobretudo o inventor de uma condição trágica do homem que busca
romper com todas as convenções da vida e da morte, do amor e do seu destino.
Ele possui o seu campo de batalha pessoal. Como todos os grandes cineastas de
ação, como todos os grandes cineastas, é um moralista. Uma vez
que como autor completo Fuller escreveu seu roteiro e seus diálogos, ele definiu,
como nunca havia feito antes com tanta precisão e clareza, seus heróis e seus
gestos, sua moral e as grandes linhas de sua ação. Pela
primeira vez também sua defesa da amizade particular é ilustrada sem reservas.
Dois homens, um general e um tenente, se falam em meias palavras, trocam
olhares inflamados, sem que seus camaradas, mas um general não é um homem só,
façam a menor alusão: a conivência é de rigor. Merrill, estrito
à sua grande solidão como todo chefe ao mesmo tempo odiado e respeitado, chega
a confidenciar ao seu médico: “Eu gosto bastante deste rapaz...”, e essa
frase tomba num silêncio cúmplice, como uma confidência íntima onde um só
advérbio é mais do que o necessário. Essa amizade impossível acaba Na guerra,
o homem se encontra nu diante da morte, sem outra defesa que não o seu
combate contra o medo e a memória. Os homens de Merrill, esses pilhantes
desumanos que têm mais do chacal ou do jaguar ébrio que do soldado de elite,
são anônimos. Seus nomes lhes pertenciam, gravados em pequenas placas de
metal, quando ainda eram homens. Após seus fins eles permanecerão em modestas
sepulturas! Os mortos não possuem passado. Uma das cenas mais reveladoras do
filme de Fuller é aquela em que um ferido, tratado inutilmente por um pobre
médico do batalhão, levanta-se, agarra-se ao uniforme de seu general gritando
e solicitando as últimas notícias sobre um de seus companheiros que viu, diz
ele, cair ao seu lado, ao passo que esse homem não é outro que ele mesmo: a
guerra assassina os homens antes da morte. Essa cena,
como muitas outras, atinge o sublime. Jamais, salvo algum lugar em Walsh (The Naked and the Dead) ou em Cottafavi
(As Legiões de César), foi-se tão longe
nos confins da revelação e das fronteiras humanas: “Se eu respiro, eu posso
colocar um pé na frente do outro...” diz Merrill, e ele avança rumo ao
desconhecido, constrito pelo sofrimento, arrastando os pés numa água onde o
sangue não tem mais cor. Esse plano é talvez o mais belo de toda a obra de
Fuller; é um dos mais belos do cinema. Amizade e
sofrimento, raiva e solidão, guerra e destino, absurdo e silêncio, o primeiro
filme de Samuel Fuller é também seu tableau mais completo da aventura humana
numa terra que não pertence ao homem e sim às forças desconhecidas que o
exaure. Mata-se em Merrill’s Marauders
como em nenhum filme que eu conheça: à metralhadora, à granada, à baioneta e
ao punhal. Se Fuller tivesse tempo, talvez utilizasse o lança-chamas. Um
gesto preciso e uma silhueta dança de forma grotesca, um ou dois segundos
antes de morder a terra, o lodo ou as covas desse imenso campo de desonra onde,
como em toda parte aliás, os verdadeiros homens desertam a vida para avançar
mais firmemente rumo às suas mortes. A coragem se assemelha a uma retração ou
antes a um sorriso crispado diante da imagem desconhecida de si mesmo, quando
não restam mais balas no paiol e o ar se vê preenchido por uma nuvem mortal de
projéteis zunindo. Seria
necessário o espaço de um livro para falarmos do filme de Fuller. Que se
saiba no entanto que a fotografia é admirável, luminosa e escura com sóis de
sangue e estilhaços de projéteis como Apollinaire jamais viveu. É um filme
preto e branco como a luz, onde as cores são objetos inquietantes tanto quanto
em La bataille de Paolo Uccello. É também
um filme mudo. A palavra rechaçada pelo silêncio é uma meditação onde o
esforço do espectador tem mais espaço, a banda sonora no seu conjunto
substituindo felizmente a música, deficiente aqui como nos outros filmes de
Fuller. Não se presta atenção nela, como também em certas convenções do
gênero impostas pelo roteiro: explicações preliminares, mapas, espécies de
diretrizes para o grande público, onde Fuller expõe sua tática num
Extremo-Oriente de fogo. É inútil
falar da mise en scène. O mínimo
que se pode dizer é que ela é lançada como num golpe ao olho do espectador, pouco
habituado a uma tal crueza na expressão, a não ser que já conheça Joseph
Losey e Raoul Walsh. Seria necessário estudar o trabalho de Jeff Chandler,
que constitui seu testamento e a única expressão dele mesmo destinada a
passar à posteridade: sua máscara esculpida no endurecimento, encasquetada de
cinza e suando uma vontade desumana, quase divina, permanece nobre e altiva como
em toda a tragédia, com verdadeiros olhares de crueldade. Os outros Marauders
são tão grandes quanto ele: permito-me citá-los à Ordem do Cinema sem medo do
ridículo. Entre as milhares de pessoas que nos fazem perder tempo em salas
escuras, esses merecem não ser esquecidos. Suas faces e seus gestos importam. Fuller,
com Merrill’s Marauders, terá
inventado um pouco mais o Cinema. De agora em diante ele anda sobre a corda
bamba. Nenhum passo em falso lhe será permitido. (Présence du Cinéma nº 14, junho de 1962,
pp. 64-66) |
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